Cavaco Silva achou por bem enunciar as virtudes que entende indispensáveis para a titularidade do cargo de Presidente da República: experiência diplomática, capacidade de estudo, equidistância política e identificação epifânica com o interesse nacional. Traduzido por miúdos, o próximo Presidente da República deverá ser tão parecido com Cavaco Silva quanto a singularidade do génio, a degeneração da classe política e a persistente obnubilação do eleitorado o permitirem. De uma assentada, o Presidente lavrou um testamento político e um louvor autobiográfico.
Ninguém pode contestar a notável eficácia política da mensagem. A imprensa e os analistas não falam de outra coisa, medindo as qualidades e os defeitos dos vários candidatos a candidatos segundo a métrica de Cavaco e partindo na senda do putativo delfim encerrado na cifra presidencial. «Será Santana? Será Marcelo? Santana não é certamente e Marcelo não é assim. É talvez Barroso, mas há pouco, poucochinho, disse que não estava para aí voltado…» A incansável busca já produziu duas vítimas (provavelmente as mais desejadas pelo autor), nas pessoas de Santana Lopes e de Marcelo Rebelo de Sousa, que não resistiram ao engodo presidencial, colocando-se na posição ridícula de se subsumirem ao arquétipo cavaquista, declarando-se nada menos do que ― “passe a imodéstia” e “por boa fortuna” ― legítimos herdeiros!
Não há, todavia, que confundir eficácia com legitimidade política. O cidadão Cavaco Silva tem todo o direito de formar e até de transmitir discreta e informalmente às lideranças partidárias opiniões relativas ao futuro da Presidência da República. Na medida em que o queiram ouvir, e a experiência acumulada de uma década atribulada no cargo recomendam-no, é perfeitamente legítimo que o faça. Não abona a favor da sua humildade, ou mesmo do mais modesto sentido autocrítico, construir um modelo de Presidente a partir da autoanálise do seu percurso. Mas a húbris é um defeito com pergaminhos políticos, e é provável que seja uma daquelas qualidades maquiavélicas que têm tanto de moralmente condenáveis quanto de politicamente necessárias. É caso para dizer que, mal por mal, senão mesmo para o bem da República, antes um Chefe de Estado pavão do que bisonho.
O problema é Cavaco não se aperceber do equívoco constitucional que é o Presidente da República em funções pretender orientar ou disciplinar as preferências políticas do eleitorado. Senão vejamos. A legitimidade política do Presidente da República baseia-se exclusivamente no sufrágio universal, directo e secreto dos cidadãos; o indivíduo que ocupa o cargo é eleito pelos concidadãos, de quem se não distingue no plano dos direitos políticos, para representar o espaço público que partilham e pela qual são corresponsáveis. Não sendo prático ou sequer possível os cidadãos assumirem conjuntamente as despesas da gestão da coisa pública, confiam essa responsabilidade, por um período determinado, a um dos pares. O Presidente representa a República no sentido de agir em substituição ou em lugar dela. E a pessoa que exerce esse cargo substitutivo não é escolhida em virtude das suas qualidades individuais ― a ascendência nobre, as qualificações académicas, a revelação profética ou o exemplo de virtude ― mas de um procedimento eleitoral em que a sua voz conta exactamente o mesmo do que a dos concidadãos.
Ao recomendar a sua pessoa como modelo de virtudes presidenciais, o Presidente comporta-se como se não tivessem sido os eleitores a escolhê-lo livremente e como se a sua legitimidade proviesse das qualidades pessoais que julga possuir em vez dos juízos políticos dos cidadãos. Apesar de invocar a autoridade de dois prestigiados constitucionalistas nas palavras de abertura deste novo volume de “Roteiros”, Cavaco não se apercebeu do absurdo constitucional que é o Presidente em funções esboçar um testamento político no quadro de um regime republicano e democrático. Num país em que as oposições questionam a legitimidade democrática de uma maioria por discordarem das respectivas opções políticas e em que uns poucos juízes se arrogam o direito de chumbar decisões do legislador democrático com fundamentos tão sibilinos quanto o carácter “excessivo”, “irrazoável” ou “desnecessário” das medidas, a intervenção bizarra do Presidente vem agravar as suspeitas de que há ainda um longo caminho a percorrer no amadurecimento da nossa democracia. A essência do governo democrático é a igualdade política. Ora os portugueses são, politicamente falando, todos iguais, mas uns consideram-se aparentemente mais iguais do que os outros.