25 de Abril. Íamos ser livres, não era? A gaivota voava, voava… Pois era mas algures, não sei bem onde nem quando, as coisas começaram a mudar. Não sei se foram as coisas que mudaram primeiro ou se foi a forma como víamos as gaivotas que se alterou antes de percebermos que as coisas não eram o que pareciam ser. (Resumindo é o velho dilema do ovo e da galinha transposto para a nossa história recente.)
Esta foi uma descoberta mais do que difícil verdadeiramente contra-natura para todos aqueles que no ano de 1974, em Portugal, tínhamos entre 4 a 104 anos pois durante meses, pelo menos três vezes por dia, lá vinha a voz de Ermelinda Duarte mais o coro a garantir-nos que “Uma gaivota voava, voava,/ asas de vento,/ coração de mar./ Como ela, somos livres,/ somos livres de voar.” (Também havia os versos dedicados à “papoila que crescia, crescia,” mas estes nunca foram muito populares fosse por causa das ressonâncias opiáceas da papoila a crescer ou pela dificuldade poético-política de fazer rimar “grito vermelho/num campo qualquer” com liberdade em qualquer campo.)
Mas seja como for houve um dia em que nós começámos a ver as gaivotas com outros olhos. Para começar constatámos que as gaivotas voavam pouco, preferiam as lixeiras à vastidão dos oceanos. Muitas até trocavam as falésias pelas varandas e esplanadas. Para cúmulo, as gaivotas em pouco tempo controlavam as demais aves. Enfim, de símbolo da liberdade a gaivota passou a parasita de que não nos conseguimos libertar. Uma praga, portanto.
O que não quer dizer que a gaivota tenha deixado ser um símbolo. Pelo contrário, ela tornou-se no símbolo da oligarquia do regime.
Não há valores. Só processos-crime. “Não acho que seja reprovável uma pessoa viver com dinheiro emprestado de outra. Não é por isso que as coisas estão erradas, mas penso que as pessoas só se deviam pronunciar quando os casos estivessem julgados. Quer o Manuel Pinho, quer o José Sócrates, não foram ainda condenados. Temos de esperar sem intervir e sem comentar”. Estas declarações de Arons de Carvalho, fundador do PS e mandatário nacional da candidatura de António Costa ao terceiro mandato de secretário-geral do PS, espelham onde nos pode levar o relativismo: “Não acho que seja reprovável uma pessoa viver com dinheiro emprestado de outra,” Não só é reprovável como é indesejável. Quer para quem pede quer para quem empresta. Mais reprovável é ainda se quem pede ocupar cargos de responsabilidade.
O segundo passo nesta apologia da anomia é reduzir a moral aos tribunais: “penso que as pessoas só se deviam pronunciar quando os casos estivessem julgados. Quer o Manuel Pinho, quer o José Sócrates, não foram ainda condenados. Temos de esperar sem intervir e sem comentar” O legado mais perverso dos anos Sócrates foi exactamente esta judicialização da moral: tudo era e é válido e tudo era e é possível desde que os tribunais não o declarem crime. Moral da História: Sócrates houve (por enquanto) um mas poderão existir os que o PS quiser.
Do absurdo. As dinâmicas do absurdo são essenciais aos processos de controlo das sociedades, sobretudo daquelas que se consideram livres. O caso da aprovação em catadupa de legislação sobre assuntos ultra-minoritários é disso sintomático: não só muitas vezes não se resolve problema algum como até se criam outros bem maiores, como a legalização das barrigas de aluguer prova à exaustão. Na prática a coisa funciona mais ou menos assim: o BE põe o assunto na agenda. Não interessa a sua relevância ou a falta dela. Muito menos se trata de resolver problemas mas sim de intervir ideologicamente. A ala esquerda do PS faz uma fuga em frente. Os Verdes fazem prova de vida e o PAN dá um ar da sua graça. Já o PCP tenta não ficar para trás. O PSD e o CDS procuram não ficar mal na fotografia. Posta a máquina em movimento saem três artigos sobre o assunto. Invariavelmente estão repletos de testemunhos de pessoas que garantem que têm direito a ser felizes e que só serão felizes se a lei lhes permitir fazer aquilo que os auto-denominados avançados defendem.
Passo seguinte: organizam-se duas conferências sobre a questão e patrocina-se um observatório que observa. Aqui já o país está mediaticamente dividido entre as pessoas boas e cultas que apoiam a mudança versus os maus e ignorantes que se lhe opõem. Feita a discussão o assunto ganha caracter de urgência e vai a votação da AR. Esta faz de conta que vota e logo surge o resultado: Portugal torna-se pioneiro em mais uma engenharia social e familiar. Nas horas seguintes títulos vários garantem que já vamos ter o direito a… e naturalmente que esse é ainda um primeiro passo numa caminhada que nos há-de levar a outras conquistas ainda mais profundas (o imaginário do avanço e do aprofundamento domina o imaginário desta gente, coisa que não teria mal algum se se dedicassem a abrir túneis mas que se revela uma catástrofe nas questões familiares).
Foi assim com as recentes alterações à identidade de género em que até assistimos a uma votação encenada porque os votos foram contados pelo número total de deputados de cada bancada e não pelo número de deputados presentes. Foi assim com as barrigas de aluguer em que a pressa de aprovar levou à produção de um lei manifestamente mal feita. Como vai ser com a eutanásia? Situações como a da Holanda aqui referida por Isabel Galriça Neto ou a recente polémica com o bebé Alfie Evans, cujos pais foram impedidos de o tirar do hospital onde se encontrava em Liverpool e levá-lo para Itália onde um hospital se tinha disposto a recebê-lo, colocam questões que temos de debater antes que seja tarde. Por exemplo, a combinação entre serviços públicos de saúde e a aprovação de legislação cada vez mais politizada para as questões da reprodução e da morte não nos está a levar a uma nacionalização do corpo?
Sujeitas à dinâmica do vale tudo e o seu contrário as sociedades ocidentais deixam-se mansamente conduzir para mais com a alegre convicção de que se estão a libertar. Do seu poiso as gaivotas agradecem.