É uma coincidência curiosa que, na mesma semana em que o CEO da United Healthcare foi assassinado por um jovem descontente com a indústria seguradora, se tenha começado a discutir em Portugal o chamado “turismo de saúde”. Quer dizer, não é bem uma coincidência. É um acaso. Eu é que forcei o nexo, porque estou aflito para arranjar tema. Não me apetece escrever sobre o velhinho simpático de barbas brancas que encanta as crianças e os ingénuos que acreditam em fantasias. Em 2025 não vão faltar oportunidades para falar do Almirante Gouveia e Melo.

Contudo, não é uma ligação completamente absurda. Há uma relação entre os dois casos. Os sistemas de saúde português e americano são opostos, na medida em que enquanto Portugal tem um SNS universal e gratuito, os Estados Unidos são conhecidos por dificultarem e encarecerem a prestação de serviços médicos. Aliás, a saúde na América é tão dispendiosa que uma das teorias sobre o homicídio é que o plano do atirador era apenas ferir o CEO.

– Ei, deste-me um tiro, pá! Para que é que foi isso?

– É para as seguradoras aprenderem que não podem enganar os clientes, como vocês fazem sempre.

– Vais-me deixar aqui deitado?

– Sim. Para vos dar uma lição. Está descansado que vou chamar uma ambulância.

– Não! Está sossegado!

– Não queres ser tratado?

– E gastar uma fortuna em cirurgias, internamentos e reabilitação? Não, obrigado! Dá-me antes um tiro na cabeça que é mais barato, por favor.

Eis a diferença entre um mero gestor e um CEO que se sacrifica para entregar valor ao accionista.

É por Portugal não ser os EUA que estamos agora a discutir o turismo da saúde, à conta dos estrangeiros que, alegadamente, procuram o nosso país para poderem usufruir de tratamentos médicos grátis. Muito resumidamente, a direita considera que há milhares de turistas de saúde, a esquerda acha que não há nenhum. Pessoalmente, não tenho opinião, mas espero que haja pelo menos um. E adorava conhecê-lo. Quem é que, precisando de cuidados médicos, consegue coordenar a marcação de uma consulta no SNS com uma viagem internacional a Portugal? A probabilidade de haver um médico disponível para os dias da estadia é infinitesimal. Já para não falar da hipótese de poder haver greves de enfermeiros, falhas nos transportes ou obras no Hospital. No fundo, é como marcar uma viagem para observação de baleias com crias recém-nascidas, mas em Madrid: não se trata de um problema de logística, é uma questão de lógica. Desejo muito conhecer um destes turistas para lhe perguntar: “Ó amigo, quem é o seu agente de viagens?” Já é chato marcar avião, hotel, reservar restaurantes, descobrir os trajectos de metro, comprar bilhetes para um teatro, quanto mais enfiar um raio-x e uma colonoscopia nessa lista.

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Confesso que não sei se o Governo tem razão. Desconheço se há muitos estrangeiros a usarem o SNS português, mas sei que há muitos portugueses que usam um SNS que aparenta ser estrangeiro. Às vezes ligo para o meu centro de saúde e ninguém atende, porque parece que trabalham no fuso horário da Nova Zelândia.

Ao que tudo indica, não há dados que comprovem a existência deste fenómeno do turismo de saúde. Se existir, o Governo faz bem em querer legislar. Se não existir, o Governo faz mesmo muito bem em soar o falso alarme. É a única maneira de reconciliar os cidadãos com o SNS. Pois se até dizem que vêm estrangeiros de propósito para o ver! É como o surf: só deixou de ser visto como actividade de delinquentes quando os turistas começaram a vir em barda.  A nossa habitual saloiice, de achar que a opinião dos estrangeiros é superior à nossa, vai fazer com que gostemos mais do Serviço Nacional de Saúde. De repente, vamos deixar de achar que um hospital está decrépito, tem é patine. E que um médico nos deixou pendurado 7 horas, chegou foi fashionably late. Isto vai fazer muito pelo ensino do inglês na 3.ª idade, para as velhinhas poderem trocar maleitas nas salas de espera. “What do you have? I have beaks of parrot. Very bad!”.

Àquelas perguntas ansiosas que colocam aos estrangeiros, “Que tal está a achar Portugal? O nosso sol é fantástico, não é? E as praias? E o peixinho grelhado? Somos muito simpáticos, não somos?”, os jornalistas vão acrescentar “Veio tratar que doença? Esse herpes está com bom aspecto, foi a isso?”

Temos de começar a habituarmo-nos. Da mesma maneira que quem vai a Roma tem de ir ver o Papa, quem vai a Paris sobe à Torre Eiffel ou quem vai a Nova Iorque passeia no Central Park, vai passar a ser costume vir a Lisboa e internar-se no Hospital Pulido Valente.