Continuo abalado com as imagens dos ataques do Hamas a Israel. São perturbadoras. Ver centenas de equipas de socorro a transportarem feridos para os hospitais é chocante e suscitam-me perguntas que não me saem da cabeça: “Como é que isto é possível? Como é que, num país sob ataque, as ambulâncias conseguem levar os feridos para um hospital que está mesmo aberto para serem atendidos por médicos que estão mesmo lá? E porque é que em Portugal não somos capazes?”

Com o fecho de vários serviços de urgências, o nosso país acordou agora para a quantidade absurda de horas de trabalho dos médicos. Quer dizer, não foi o país todo que acordou. Os médicos já estavam acordados, alguns deles há anos sem dormir. A Netflix podia fazer uma versão portuguesa do Dr. Jekyll & Mr. Hyde, sobre um médico do SNS. Em vez de se transformar numa figura assustadora depois de tomar uma poção, o Dr. Jekyll português fica irascível por não dormir o suficiente. Padece de birra de sono, como os bebés.

Em 2020 pediram-nos para não irmos às urgências porque os médicos estavam assoberbados a lutar contra a Covid. Agora, devemos evitar os hospitais porque os médicos estão estafados a lutar contra o João Pestana. Além da proverbial “letra de médico”, que não se consegue decifrar, agora há a “fala de médico”, também impossível de se perceber, porque é dita enquanto se boceja. Vive-se o tempo em que a expressão “visita de médico” deixa de ser uma visita curta para passar a ser uma estadia longa, na medida em que o médico faz uma sesta sentado no nosso sofá e fica até ao dia seguinte.

Felizmente, este caos no SNS vai acabar em breve. O Ministro já anunciou a medida que vai resolver a questão. Não, não é oferecer melhores condições de trabalho aos médicos. Nem organizar melhor os serviços. Nem sequer pagar mais. Trata-se de confiar na deontologia dos médicos.

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Este apelo à ética é bem jogado por parte de Manuel Pizarro. Ele sabe que os médicos fizeram um juramento em que se comprometem a salvar vidas. Mesmo quando o que mais lhes apetece é dar alta prematuramente a um doente, só para se poderem deitar na sua cama. Os médicos são sérios, não quebram juramentos. Mais depressa quebram o queixo, por adormecerem em pé e caírem redondos ao chão. Já o Governo, embora tenha prometido muito, não jurou nada a ninguém. Por outro lado, talvez não seja muito sensato contar com a consciência de pessoas que, com tanto sono, na maior parte do tempo estão só semi-conscientes.

No fundo, o que Manuel Pizarro está a dizer é que o SNS, com profissionais altamente qualificados que lidam com tecnologia avançada em decisões de vida ou morte, funciona à base de boa vontade. Pelos vistos, o Governo acha que a sua falta de jeito é compensada com excesso de jeitinhos dos médicos.

Se bem que há que reconhecer que o SNS não está assim tão mal. A prova são as pessoas às portas dos Centros de Saúde para marcarem consultas. É como nos concertos: ninguém dorme ao relento numa fila se não tiver mesmo muita vontade de comprar o bilhete. Hoje em dia, o Centro de Saúde do Cacém é os Coldplay do SNS.

Na semana passada – e mais uma vez – António Costa garantiu que o maior investimento de sempre no SNS foi em 2023. Não sei se esta afirmação passava no Fact Check sem levar a etiqueta “verdadeiro, mas”. É que o maior investimento de sempre é o de 2023, mas também abarca parte de 2024. Há médicos que fizeram tantas horas extraordinárias em 2023 que o que recebem também cobriu o equivalente a Janeiro, Fevereiro, Março e Abril do ano que vem.

Normalmente, a conversa do “maior investimento de sempre” vem acompanhada por um gráfico em que se compara a diferença entre o dinheiro investido em 2015 e o investido agora. Parece que há hospitais em que, à falta de médicos para os atenderem, os pacientes saem de lá com uma cópia do gráfico, com indicação terapêutica para o consultar 3x ao dia, após as refeições. Não faz nada pela maleita do doente, mas ao menos lembra-o de que está a não ser servido pelo SNS mais endinheirado de sempre. Ser-se esnobado por um milionário tem outro sabor.

Agora, não sou um pessimista, mas começo a ficar preocupado. Depois do maior investimento de sempre na saúde ter deixado o SNS neste caos, o Governo já anunciou o maior investimento de sempre em infraestruturas e equipamentos para forças de segurança, o maior investimento de sempre em prevenção e combate a incêndios ou o maior investimento de sempre em sistemas tecnológicos da Justiça. Em princípio, isto significa que em breve vamos ter uma péssima época de incêndios, em que a polícia não vai conseguir apanhar os incendiários que, mesmo fossem apanhados, não seriam julgados.

Era previsível que o argumento do Governo para responder a uma classe profissional que está esgotada fosse uma canção de embalar. “O maior investimento de sempre” podia ser cantada pelo Vitinho a mandar-nos para a cama. Desde que não fosse uma cama de hospital, claro.