Eventuais medidas que proíbam a realização de jogos de futebol e outros eventos desportivos em dia de eleições não parecem coadunar-se com o nosso modelo constitucional de voto não obrigatório. No entanto, esta questão deriva de uma anterior problemática, que é a de saber se o voto deverá ser obrigatório ou facultativo. Este dilema, que todos os anos coloco aos meus alunos de Direitos Fundamentais, suscita invariavelmente uma polarização de argumentos e um debate apaixonado.

O voto obrigatório existe em vários Estados, com modalidades bem distintas. Se alguns Estados não contemplam sanções para o incumprimento do dever de votar (Egito, Costa Rica, México, Grécia) – ou, apesar de as consagrarem, não as aplicam (Honduras, El Salvador) – outros Estados incluem sanções mais ou menos pesadas, que podem passar por sanções monetárias (Bélgica), pela impossibilidade de obtenção de passaporte ou de empréstimos (Brasil), por restrições a transações bancárias (Bolívia), pela retirada do nome do registo de eleitores (Singapura), ou até mesmo por sanções penais (Austrália, na hipótese de não se ter efetuado o pagamento voluntário da sanção monetária).

É curioso verificar que a opção pelo voto obrigatório surge imbricada com a história político-constitucional dos Estados em causa: (i) nuns Estados, o voto obrigatório acompanhou a própria instauração do voto universal, remontando aos inícios do século XX; (ii) noutros Estados, foi introduzida em momentos de reviravolta e ebulição políticas, tais como a transição de regimes autoritários para regimes democráticos (Grécia ou Chile). Uma exceção é o caso australiano, no qual o voto obrigatório foi introduzido com o intuito de dar resposta a elevados níveis de abstenção.

Os argumentos a favor do voto obrigatório valorizam a memória histórica da luta pelo direito de voto (o voto das mulheres, por exemplo) e entendem que esta é uma forma de combater o desprendimento da política e promover uma cidadania ativa. Uma tal lógica argumentativa tem mais força quando estamos perante democracias ainda não consolidadas. Desvalorizando a ideia da “obrigação” de votar, o enfoque é outrossim colocado no contributo para a sociedade e para o bem comum, à semelhança do que sucede com o dever de pagar impostos. Um bom argumento a favor do voto obrigatório é a dificuldade em interpretar o silêncio da abstenção: significará este mutismo discordância ou concordância com o estado da vida política? Por último, invoca-se ainda que, numa análise custo-benefício, as vantagens que se retiram da inserção de um modelo de voto obrigatório compensam os custos burocráticos do mesmo.

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Em 1971, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem entendeu que o voto obrigatório não viola a liberdade de pensamento, porquanto o que é obrigatório é a presença da pessoa e não o ato em si de votar, existindo sempre a possibilidade de votar em branco. Mas será mesmo assim?

Aqueles que discordam do voto obrigatório enfatizam que o direito a votar é um direito subjetivo que exprime uma escolha individual: a escolha de ir ou não ir votar. A existir um dever de votar, este somente poderá ser um dever cívico e não um dever jurídico. Se a democracia é liberdade de escolha, então essa escolha deverá estar necessariamente presente no ato mais intrinsecamente democrático que existe: o ato de escolher aqueles que nos representarão. A isto acresce que o simples ato de não votar (abstenção) encarna uma mensagem política não despicienda. Se isto é assim, obrigar alguém que, legitima ou ilegitimamente, não pretende votar a ir votar poderá ter efeitos perversos, tais como o voto não esclarecido e não devidamente refletido (tese defendida por Jason Brannon). Argumentam ainda alguns que são os políticos que deverão incitar os eleitores a votar e metamorfosear o entediante governo da Pólis em algo apelativo e acessível para todos.

Em termos de desenho constitucional, não me parece que o voto obrigatório seja antidemocrático ou um mal a combater. Não obstante, também não defendo que este seja o caminho a seguir, preferindo a opção que existe em Portugal – e na maioria dos Estados democráticos contemporâneos – de plena autodeterminação do eleitor no exercício da sua capacidade eleitoral ativa. Na minha opinião, o modelo de voto obrigatório acaba por conduzir a uma certa infantilização da sociedade, a uma falta de espontaneidade política e à ostentação de uma (aparente) saúde democrática. A participação à força pode certamente disfarçar o sintoma mais visível da alienação política – o absentismo – mas não me parece que consiga contornar a doença que é o desencanto com a política enquanto processo, nem sequer atiçar a consciência política dos eleitores.

Com efeito, dados empíricos reunidos neste estudo da Comissão Eleitoral do Parlamento do Reino Unido apontam que o voto obrigatório tem dois efeitos positivos: aumento da participação eleitoral e redução da variação nas taxas de participação entre diferentes grupos socioeconómicos (em sentido contrário, porém, e quanto à realidade brasileira, argumentando que o voto obrigatório não contribuiu para a correção de assimetrias sociais nem para a inclusão social, veja-se o seguinte estudo). No entanto, e algo surpreendentemente, a conclusão mais intrigante do primeiro conjunto de estudos é a de que não se verificou um aumento no envolvimento político mais amplo, tal como o interesse e a participação na vida política quotidiana. Por outras palavras, o que o voto obrigatório incrementa é a participação no ato eleitoral – de fácil contabilização estatística – e não naquilo que subjaz às eleições, que é o envolvimento em propostas políticas, que mais tarde conduzirão à tomada de opções políticas primárias (as políticas públicas) pelos órgãos legislativos pertinentes. A maturidade no exercício da cidadania pressupõe, então, uma sociedade civil mais empenhada e atenta.

Sem prejuízo das considerações tecidas, a ser alguma vez introduzido o voto obrigatório, que o seja com a possibilidade de uma “abstenção positiva”, isto é, com um item onde se possa colocar uma cruz em “nenhuma das opções acima”. Em vez de se entregar um papel em branco ou um voto deliberadamente inválido (rasurado, com comentários impróprios, etc.): a ideia seria oficializar de uma forma mais digna o protesto de “não voto” em nenhuma das soluções oferecidas.

Quer se defenda o voto obrigatório ou o voto facultativo, importa ressalvar o seguinte: é necessário aumentar a comodidade do ato de votar, de modo a que o eleitor possa despender o mínimo de tempo possível. Para cumprir este desiderato, há sempre a eventualidade de introduzir, com a máxima cautela, o voto eletrónico (quando os avanços tecnológicos permitirem uma rigorosa verificação da identidade e secretismo do voto) ou há até quem proponha a possibilidade de votar em qualquer assembleia de voto. A terminar, entendo que todas as sugestões que procurem contornar o cansaço democrático dos nossos tempos frenéticos deverão ser postas em cima da mesa e devidamente ponderadas.