A Guerra & Paz Editores acrescentou recentemente mais um livro à sua coleção que vale a pena ter só pelo nome: “Os livros não se rendem”. Felizmente, os livros são quase sempre tão bons como o nome da coleção, o que facilita a decisão de compra. Neste último, e sob o título A Religião Woke, o filósofo francês Jean-François Braunstein apresenta um argumento que tem sido revisitado muitas vezes nos últimos anos: o de que o movimento woke pode e deve ser equiparado a um movimento religioso – ideia defendida, entre nós, por Guilherme Valente e João Miguel Tavares e, nos Estados Unidos, em particular por John McWhorter, em Woke Racism: How a New Religion Has Betrayed Black America.
O livro de Braunstein lê-se com facilidade: apesar de partir de uma abordagem filosófica, as páginas estão polvilhadas com exemplos do constrangimento intelectual e do cancelamento real que têm marcado os nossos dias. Contudo, sob uma análise atenta, o livro apresenta um conjunto de fragilidades que resultam de o autor não ter separado claramente as duas dimensões deste fenómeno: a primeira correspondendo às ideias identitárias que têm vindo a ser amadurecidas nas últimas cinco décadas e que estão filosoficamente sedimentadas na academia; a segunda que se prende com a manifestação dessas ideias no espaço mais generalista e que se tem convencionado designar como cultura woke.
Distinguir estes dois planos – o das ideias identitárias e o da manifestação woke – exige uma leitura cronológica que desmente um dos argumentos centrais do autor: o de que “a teoria do género assume o centro da religião woke” (segundo capítulo). Na verdade, a teoria do género é a última etapa do movimento identitário e não pode representar o seu cerne – mais do que isso, ela entra em contradição com os princípios fundamentais do pensamento identitário (nomeadamente, ao pôr em causa a própria ideia de identidade irredutível que fundamenta aquele pensamento).
A fixação do autor com a teoria do género justifica-se provavelmente pelo facto de esta ser a dimensão woke mais evidente na Europa (considerando que a questão racial presente nos Estados Unidos não tem o mesmo peso entre nós), e nessa medida a sua preocupação com o tema é legítima e a sua luta justa. Mas daí não se segue que a teoria do género constitua o cerne destas ideias. Como tenho vindo a defender, o pensamento identitário resulta da confluência do pensamento negro com o pensamento feminista, gerando uma viragem identitária na compreensão do mundo. Braunstein acaba por traçar esta linha de raciocínio, mas só no capítulo 3 (dedicado à teoria crítica da raça) e no capítulo 4 (sobre as epistemologias do ponto de vista). Assim, o livro deve ser lido ao contrário: são as últimas ideias apresentadas a permitir o desenvolvimento da teoria do género.
Em segundo lugar, ao não distinguir claramente as ideias identitárias da sua manifestação woke, o autor negligencia dois importantes fatores do wokismo e que resultam da sua dimensão geracional. É que o wokismo relaciona-se com uma geração específica, a quem foi ensinado que o mundo é um lugar perigoso, que as palavras magoam tanto como pedras e paus e que as emoções pessoais (aquilo que sentimos sobre um determinado assunto) deve prevalecer sobre uma discussão racional. O livro de Claire Fox, diretora do fórum Academy of Ideas, é particularmente importante para compreender este aspeto e seria um bom título para a coleção dos livros que não se rendem: “I STILL find that offensive” (fica a sugestão).
Foi esta geração superprotegida, como argumentam Jonathan Haidt e Greg Lukianoff em The Coddling of the American Mind (também ainda sem tradução entre nós!), que se apoderou das redes sociais para manifestar a atitude de pureza moral que caracteriza o wokismo – algo que a palavra inglesa self-righteous capta tão bem, mas que a língua portuguesa tem dificuldade em traduzir. Este espírito zelota manifestado digitalmente aproxima-se do fenómeno religioso, mas Braunstein não se debruça sobre este aspeto tão relevante, o que enfraquece o seu argumento – até porque estas são as primeiras gerações a viver num mundo a-religioso, mas essencialmente imaterial (porque digital).
Uma última fragilidade da abordagem de Braunstein resulta do seu viés positivista: citando a célebre fórmula atribuída a Tertuliano – “credo quia absurdum” –, o autor parece resumir todo o argumento identitário a um pensamento absurdo. Mas essa decisão limita-se a uma saída fácil, pois não empreende a árdua tarefa de compreensão de um argumento que, embora se manifeste muitas vezes de forma absurda, encontra ressonância em tantas pessoas. Se tal acontece é porque o pensamento identitário deve ter algum mérito – e reduzi-lo a uma manifestação de absurdidade, interpretando apenas o elemento fenomenológico, não permite compreender as alterações que temos assistido, nomeadamente no mundo académico.
Ainda assim, o livro de Braunstein representa um contributo valioso: ele demonstra que estas ideias já se estão a estabelecer fora do mundo anglo-saxónico, nomeadamente em França, um país com uma orgulhosa tradição republicana (expressão que os franceses usam como equivalente a paradigma liberal). E isto deve colocar-nos de sobreaviso para o nosso próprio país, ainda que tantos (nomeadamente nos meios de comunicação) tendam a desvalorizar o perigo destas ideias. Não só muitas pessoas (mesmo de modo inconsciente) se encontram já sob o efeito venenoso da linguagem (Victor Klemperer nunca deve ser esquecido), como as instituições académicas têm, aos poucos, adotado os princípios identitários. A título de exemplo, vejamos o Guia para a Utilização de Linguagem Inclusiva, aprovado pela Universidade do Porto, onde encontramos todo o vocabulário identitário, desde a interseccionalidade ao viés de género. E não devemos ignorar o poder da linguagem: vamos deixando que os novos vocabulários se apropriem do quotidiano e, quando nos apercebemos, já estamos deles cativos.
Os livros não se rendem. Importa que nós façamos o mesmo.