Pode parecer uma despedida. É exactamente o contrário. Um pedido à Procuradora-Geral da República Joana Marques Vidal para que aceite cumprir mais um mandato. O que mostrou e realizou neste mandato torna num gravíssimo erro que não fosse proposta a recondução e não fosse renomeada. Erros desses feririam duramente o país e não deixariam de ser tratados com severidade no plano político. Por isso, confiando que assim não sucederá, sou dos portugueses que, agradecendo o que a Procuradora cumpriu neste mandato que termina, está à espera – e lhe pede – que, chegando a proposta de recondução e a renomeação, aceite mais seis anos de serviço, que todos sabemos ser muito exigente.

Em primeiro lugar, a questão constitucional. Não existe. O artigo 222, n.º 3, a Constituição diz: “O mandato do Procurador-Geral da República tem a duração de seis anos, sem prejuízo do disposto na alínea m) do artigo 133º.” – isto é, sem prejuízo do poder de proposta do Governo e do poder de nomeação do Presidente da República. É igual para a exoneração. Dizendo de outro modo, nem o Governo, nem o Presidente da República estão minimamente limitados no poder de propor e de nomear (ou exonerar), conforme entenderem mais ajustado aos interesses e às necessidades do Estado, do país e da República.

A tese da impossibilidade constitucional de nomeação é forçada e algo rebuscada, só catando apoio circunstancial no quadro que rodeou a revisão constitucional de 1997. Mas, lendo-a objectivamente, é claro que a Constituição não contém qualquer norma de limitação de mandatos quanto ao Procurador-Geral da República. Podia tê-la adoptado. Sem dúvida que a adoptaria, se esse tivesse sido o pensamento e o propósito dos legisladores constituintes.

Por isso, afirmando a Constituição que a fixação do mandato de seis anos não prejudica – e, portanto, em nada limita – os poderes do Governo e do Presidente da República quanto à nomeação do Procurador, é inteiramente abusivo afirmar que Governo e Presidente estão de pés e mãos atadas, proibidos de renomearem para segundo mandato a Procuradora que fez muito bom trabalho, numa área sensível do Estado que tanto carecia de uma onda de confiança pública.

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A tese da limitação imperativa a um mandato é tema possível para debate intelectual, opinião judiciária ou académica, reflexão política para o futuro. Pode ser positiva, pode ser negativa. Mas não é actual. Hoje por hoje, não existe. Não está lá. E por isso, puxar para a actualidade a tese da limitação imperativa a um mandato é expediente para alguém se esconder atrás de umas silvas, sem dizer as razões por que não quer um segundo mandato da Procuradora. Não creio que haja uma só boa razão para isso. E também não acredito que, por muita tentação e pressão que tenha havido, alguém vá, agora, esconder-se atrás das silvas.

Ninguém questiona a competência técnica e a capacidade jurídica da Procuradora-Geral da República Joana Marques Vidal. Pelo contrário. Tem longa e sólida carreira como magistrada, que fala por si.

Mas não é isto o principal. O principal, o decisivo, é a capacidade de liderança e de afirmação à frente de uma magistratura numerosa, poderosa, fundamental para o bom funcionamento do Estado de Direito: o Ministério Público. É aqui que o desempenho da Procuradora-Geral da República Joana Marques Vidal mais se notabilizou. É isso que a qualifica especialmente para lhe ser pedido o sacrifício do segundo mandato: para poder ser consolidado o que fez, não correndo nós o risco de voltar-se para trás; e para poder ser feito ou concluído o que ainda está por fazer.

A Procuradora foi sóbria, serena e firme. Tendo trabalhado com vários casos de enorme complexidade, tendo tido que tomar – mais amiúde do que desejaria – decisões processuais delicadas e difíceis, nunca a vimos enervar-se, hesitar, arrastar, confundir-se ou buscar o protagonismo do caso. Esteve sempre à altura do seu papel, nunca procurou o de outros.

Lidando com casos de poderosos como nunca houvera, a Procuradora foi tanto a imagem da justiça que investiga e quer saber, como o rosto e a mão da independência. As equipas dos processos não se queixam da Procuradoria-Geral, nem fizeram ouvir qualquer murmúrio ou rumor a seu respeito. Ninguém tem dúvidas sobre que o espírito e o pensamento da Procuradora era o de que se buscasse a verdade, toda a verdade, nada mais do que a verdade, fosse com quem fosse, doesse a quem doesse.

Na hierarquia do Ministério Público, vastíssima corporação, há vários modos por que uma orientação se transmite e um espírito se transmite, irradiando no corpo colectivo. Não conhecemos muito desse funcionamento interno. Nem temos de conhecer. Mas a opinião pública portuguesa formou a ideia, sólida e esmagadora, de que, com Joana Marques Vidal, o Ministério Público, sem negligenciar os pequenos e as responsabilidades gerais, esteve à altura dos poderosos e soube, como nunca antes, investigar os casos escandalosos dos anos e dos meandros que nos conduziram à mais grave crise de sempre em Portugal.

Como poderíamos, agora, quebrar isto tudo, quando tantos casos desaguam no julgamento?

Deixo alguns pedidos para o segundo mandato.

O primeiro é sobre o segredo de justiça. O que se passa é uma vergonha. Tem muitos, muitos anos. Recordo que foi “O Independente” que aí achou um instrumento, transitando-o das colunas discretas dos pilha-galinhas para a criminalidade luzida das primeiras páginas. Depois, o costume judiciário-jornalístico irradiou e assentou praça. Todos o fazem, com uma variada gama de escrúpulos ou falta deles, em que todas as sensibilidades são servidas. É problema muito grave do Estado de Direito. Autorizamos a polícia a vigiar-nos, a escutar-nos, a filmar-nos, a ver as nossas contas, a seguir-nos electronicamente, porque isso é indispensável à segurança geral, à nossa segurança e a que se faça justiça quando é o caso. Não autorizamos um jornal, uma rádio, uma televisão a fazer isso. Cada vez que um cidadão, suspeito que seja, arguido que esteja, se vê devassado, enxovalhado e humilhado, em papel, na rádio ou num ecrã, é como se tivesse sido assaltado – assaltado pela polícia e cobertura do Ministério Público.

Bem sei que o Ministério Público tem as costas largas. Há vezes em que são os tribunais, o Conselho Superior de Magistratura, funcionários judiciais, os próprios advogados dos arguidos, visando um efeito de vitimização ou uma qualquer estratégia processual. Mas a responsabilidade de agir e reagir é do Ministério Público. O Estado tem de estar à altura de guardar os segredos que lhe permitimos que penetre; e só os usar para estritos fins de justiça. Há formas eficazes de agir se quiser. É tempo de querer.

A justiça perde muito com a desordem que se passa. Perde em dignidade, perde em respeito. E perde também quando a devassa alimenta expectativas de punições que nunca chegam. Foi só espectáculo, populismo judiciário. Esse é o descrédito maior. Os segredos são para o tribunal; e para cumprirem aí todo o seu poder.

O segundo é no combate à corrupção. Muito foi feito na investigação. Mas muito pouco ainda no julgamento e no cumprimento de penas. Os suspeitos transitam suavemente de “arguidos-inocentes-até-prova-em-contrário” para a posição de “condenados-sob-amnistia-de-pendência-administrativa”, em consequência de recursos ou doutro labirinto processual. Os cidadãos não compreendem que, em Portugal, nestes crimes, os culpados não cumpram penas. E isso gera enorme efeito de desmoralização. O Ministério Público tem de fazer ouvir a sua experiência e a sua voz. A justiça é para ter efeito, rápido de preferência. A justiça tem de ser efectiva e oportuna, não diletante e platónica.

O outro pedido, o terceiro, tem outros destinatários: é importante que outros actores falem alto e falem grosso, exigindo e aplicando responsabilidade política rigorosa sobre muitos dos arguidos ou quase arguidos, que se evadem sistematicamente a trote do brocardo falsificado “à justiça o que é da justiça, à política o que é da política.” Não pode acontecer que o Ministério Púbico tenha dado um enorme passo em frente na investigação judiciária da criminalidade de poderosos e que a política lhe continue preguiçosamente indiferente, fazendo de conta que não sabe o que toda a gente sabe. E que toda a gente sabe que a sabe.

Na política, o critério não é o da prova judiciária; é o da decência pública e dos critérios gerais da opinião pública. A política está no plano de “à mulher de César não lhe chega ser séria, é preciso também parecer”. Só por essa elevada exigência nos critérios gerais de direcção política, a corrupção será acantonada e vencida.

Isso é muito mais importante e decisivo do que o brinquedo demagógico da delação premiada (só o nome arrepia…), que, no Brasil, não ajudou a grande estabilidade, nem a um sistema político muito bom, nem a uma justiça muito sólida. É manifesto que estas ideias, se derrapam para além de institutos de colaboração processual que já temos, só podem transformar a Justiça num infernal parlamento de vinganças. E não é isso. Justiça é um assunto sério.

Espero que a Procuradora-Geral da República Joana Marques Vidal cumpra mais seis anos. Devolveu-nos a esperança – e esse é o seu legado mais poderoso. Obrigado.

Espero que esses segundos seis anos sejam correspondidos também pelo lado da política, tanto na qualidade da legislação, como na prontidão da acção política e em efectiva liderança do exemplo e pelo exemplo. Com independência de parte a parte, a justiça e a política devem construir-nos, cada uma por seu lado, um país regido por critérios de decência, prestígio de instituições e governantes, juízos de Bem Comum. Será assim tão difícil?