Como é sobejamente sabido, o General Humberto Delgado, candidato à presidência da República em 1958, quando questionado sobre o destino de Salazar, caso fosse eleito, respondeu: “Obviamente, demito-o!”.
Não obstante o seu impacto político, a afirmação não fazia sentido em termos constitucionais. Com efeito, se o presidente do Conselho de Ministros, como então se dizia, cessava nas suas funções ao tomar posse um novo chefe de Estado. Era ao novo presidente que competia a eventual recondução, ou substituição, do chefe do governo. Assim sendo, o presidente eleito não poderia demitir, como é óbvio, quem já estava demissionário. A frase de Humberto Delgado, apesar de ser, salvo melhor opinião, juridicamente incongruente, ficou para a História.
Vem este episódio a propósito do médico português obviamente demitido da Academia Pontifícia para a Vida, organismo científico da Santa Sé para as questões da Bioética. O Dr. Rui Nunes que, para além de professor catedrático da Universidade do Porto, também é presidente da Associação Portuguesa de Bioética, tinha sido nomeado sócio correspondente dessa Academia pontifícia, no passado 27 de Fevereiro, embora a notícia só tivesse sido divulgada dois meses depois.
Segundo o comunicado da Academia, já divulgado no Observador, a iniciativa da sua demissão, poucos meses depois da sua nomeação, partiu da instituição pontifícia: “Depois de alguns meses, tendo em conta a publicação de vários artigos nos media portugueses, assim como uma mais aprofundada avaliação do trabalho científico do Professor no tocante ao tema do fim da vida, a Academia chegou, de completo acordo com o próprio Prof. Rui Nunes, à revogação da nomeação, através de uma carta que o Presidente desta Academia assinou e enviou ao catedrático português”.
Rui Nunes, que se manifestou surpreendido e honrado pelo convite que lhe tinha sido feito pelo presidente da Academia Pontifícia para a Vida, o arcebispo Vincenzo Paglia, reagiu com naturalidade à sua demissão, tendo então proferido palavras de grande apreço pelo Santo Padre e pela Igreja. Não excluiu a hipótese de, no futuro, manter uma “colaboração mais informal” com a Academia, não obstante ter deixado de a ela pertencer.
Segundo o presidente da Associação Portuguesa de Bioética, a sua desvinculação da Academia favorece “a sua liberdade e independência na defesa de problemas candentes da Bioética contemporânea, designadamente a defesa do Testamento Vital, a implementação de políticas de Igualdade de Género, ou a aplicação das mais modernas tecnologias de Procriação Medicamente Assistida”.
A Academia Pontifícia para a Vida, embora seja um organismo central da Igreja católica, reúne cientistas de renome de todo o mundo, sejam ou não cristãos. A todos, católicos e não católicos, se exige uma atitude humanista, de acordo com os princípios evangélicos e a doutrina social da Igreja. Neste sentido, quem defenda o aborto, a eutanásia, o eugenismo ou a discriminação racial, não pode, obviamente, pertencer a esta Academia Pontifícia que, contudo, acolhe cientistas não católicos e até não cristãos, ateus e agnósticos, desde que subscrevam a Declaração de Servidores da Vida, pela qual se comprometem a defender a vida humana, desde a concepção e até à morte natural, de acordo com o magistério da Igreja, segundo o art. 5, § 4º, alínea b, dos estatutos.
A nomeação de Rui Nunes tinha sido recebida com estupefação pelos médicos católicos portugueses, tendo em conta as divergências entre a doutrina social da Igreja e as posições do presidente da Associação Portuguesa de Bioética, recentemente divulgadas em artigos sobre a eutanásia e a procriação medicamente assistida. Ante as contradições entre esses textos e o magistério da Igreja, o presidente da Academia Pontifícia para a Vida viu-se obrigado a revogar a nomeação de Rui Nunes. Fê-lo de “acordo mútuo” com o próprio, como este reconheceu em comunicado à imprensa. Se é de elogiar a ortodoxia da Academia, não é menos notável a firmeza e delicadeza do seu presidente, bem como a atitude do cientista convidado, que compreendeu e aceitou a sua demissão.
Talvez alguém possa, à luz deste caso, temer que a Inquisição esteja de volta, ou que não haja liberdade de pensamento e de expressão na Igreja, nomeadamente para os cientistas. Felizmente, nem o ominoso Santo Ofício ressuscitou, nem está comprometida a liberdade científica dos crentes. Todos os católicos têm a mesma liberdade que qualquer outro cidadão, seja crente ou pagão. Mas a Igreja católica, como qualquer outra instituição, tem o direito e o dever de exigir coerência aos seus membros, sob pena de farisaísmo.
É verdade que, no caso Galileu, a Igreja, defendendo o que então era a opinião generalizada dos cientistas, condenou o heliocentrismo, que já antes tinha sido teorizado por Copérnico, um padre astrónomo polaco. Galileu, embora tivesse razão na conclusão a que chegou, não logrou prová-la cientificamente e, por isso, recorreu a argumentos bíblicos. A Igreja, não tendo competência na matéria, limitou-se a acatar o parecer da comunidade científica de então, reprovando também o uso indevido da Sagrada Escritura. Galileu aceitou a sentença a que foi condenado e morreu em paz com Deus e com a Igreja, permanecendo católico, apostólico e romano. É óbvio que a hierarquia eclesiástica não se deveria ter pronunciado sobre uma questão científica que não lhe dizia directamente respeito, nem Galileu deveria ter usado a Bíblia para corroborar a sua hipótese científica.
A Igreja não se pode alhear das questões científicas que têm transcendência moral, como são as que se referem ao princípio e ao fim da vida humana. Por este motivo, combateu as políticas racistas e eugenistas do nacional-socialismo alemão, bem como a política nazi de extermínio de judeus, ciganos, etc. A Igreja reconhece a total liberdade dos seus fiéis em questões políticas, económicas e sociais, mas exige-lhes coerência com os seus princípios. Ninguém pode ser obrigado a ser católico, ou a permanecer como tal, mas, aos que o querem ser, pede-se que sejam consequentes com essa sua opção.
Enquanto em Portugal há ‘católicos’ que, como o P. Anselmo Borges e José Manuel Pureza, respectivamente negam o dogma da virgindade de Maria e promovem a eutanásia, do Papa Francisco chega, em boa hora, um sinal inequívoco de coerência doutrinal e de coragem pastoral.