Foi com pompa e circunstância que Aristides de Sousa Mendes recebeu honras de Panteão Nacional. O ex-Cônsul de Portugal em Bordéus destacou-se pela sua acção humanitária durante a Segunda Guerra Mundial, dando vistos a judeus que, de outra forma, poderiam ter sido exterminados nos campos de concentração nazis. Por este motivo, foi reconhecido, em 1966, pelo Estado de Israel, como “Justo entre as Nações”.

É certo que Sousa Mendes, ao facultar os vistos a quem não se encontrava nas condições previstas para os receber, infringiu as ordens que tinha recebido. Também é sabido que pagou cara essa desobediência: foi demitido da carreira consular. Embora lhe tenha sido facultada uma pensão, a verdade é que era manifestamente insuficiente para garantir a sua sobrevivência, bem como a dos seus 14 filhos. Por isso, para além da humilhação da sua demissão dos quadros da carreira consular do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que seu irmão César viria a chefiar, Aristides de Sousa Mendes também padeceu, a nível económico, as consequências do seu acto humanitário, vivendo, até à sua morte, uma dolorosa indigência.

Do caso Sousa Mendes, cuja complexidade histórica ultrapassa o âmbito desta crónica, interessa apenas o dilema moral: o cônsul ou cumpria as instruções que tinha e negava os vistos aos judeus perseguidos, ou lhes concedia esses salvo-condutos, desobedecendo às indicações que lhe tinham sido dadas. Por estar a cumprir ordens, era mínima a sua responsabilidade no extermínio dos judeus que, por esse motivo, não pudessem ser salvos, mas a sua desobediência era razão suficiente para a sua demissão compulsiva, que aconteceu, ficando seriamente ameaçada a sua sobrevivência.

Sousa Mendes, como é óbvio, não ignorava a responsabilidade em que incorria, mas não se escudou nas ordens recebidas, nem na legítima defesa, para optar pela atitude mais cómoda. Nem sequer pôs a subsistência da sua família à frente do direito à vida dos judeus, que só podia proteger com a concessão de vistos não autorizados. Consta que, nesse contexto, terá dito: “Se há que desobedecer, prefiro que seja a uma ordem dos homens, do que a uma ordem de Deus”.

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Se Aristides tivesse agido como um escrupuloso funcionário, não teria incorrido, em termos estritamente jurídicos, em falta. Também do ponto de vista ético, se cumprisse os regulamentos vigentes, não cometeria nenhum ilícito, desculpado como estava pela obediência devida aos seus superiores, bem como pela obrigação moral de zelar pelo bem próprio e da sua família. Portanto, se o cônsul em Bordéus se negasse a conceder esses vistos, não teria sido nenhum criminoso, como o não foram, decerto, muitos outros funcionários que, em igualdade de circunstâncias, se limitaram a cumprir com as suas estatutárias obrigações. Mas, tendo desobedecido a essas ordens, prejudicando-se gravemente, tanto a nível pessoal como familiar, em termos profissionais e socioeconómicos, Aristides de Sousa Mendes foi heróico.

Infelizmente, a reabilitação do ex-cônsul não aconteceu em sua vida. Readmitido, postumamente, na carreira de que foi compulsivamente exonerado, Aristides passou a ser, não obstante outros aspectos menos exemplares da sua vida, uma referência ética para todos os portugueses. O Estado, depois de o honrar com a distinção do Panteão Nacional, não pode agora ignorar, nem contradizer, o seu legado moral.

Esteve bem a Assembleia da República quando homenageou a memória do cônsul português, agora evocado em Santa Engrácia. Mas esta distinção só faz sentido na medida em que o parlamento valorizar a vida humana. Por isso, a legalização da eutanásia é uma ofensa à memória de Aristides de Sousa Mendes.

O Marechal Rommel colaborou na operação Valquíria, que pretendia a eliminação de Hitler. O fracasso do atentado implicou a morte dos conspiradores, mas como o mítico ‘leão do deserto’ era um herói nacional, foi-lhe dada a possibilidade de se matar a si próprio. Caso contrário, seria condenado à morte por um tribunal de guerra, e a sua viúva e filho ficariam desamparados. O marechal, tendo em conta o bem dos seus, aceitou pôr termo à vida – na realidade não se suicidou, porque a sua morte era já certa e inevitável – e teve um funeral de Estado. Mas, quando um general ofereceu à viúva o seu braço, a Senhora Rommel recusou, dizendo: Não é preciso levar tão longe a hipocrisia!

Também fez bem o Chefe de Estado quando remeteu, para o Tribunal Constitucional, a primeira versão do diploma pró-eutanásia aprovado pela Assembleia da República. Certamente, a objecção principal era e é a da inviolabilidade da vida humana, mas também os outros reparos, de carácter mais formal do que substantivo, eram pertinentes e, por isso, obrigaram à revisão do diploma, que iludiu a questão essencial. Em relação ao novo texto, o Professor Paulo Otero, catedrático da Faculdade de Direito, onde foi colega do Professor Marcelo Rebelo de Sousa e do actual Presidente do Tribunal Constitucional, considerou que foi pior a emenda do que o soneto. Foi da mesma opinião a Dr.ª Teresa de Melo Ribeiro, em excelente artigo aqui publicado no passado dia 3. Sendo esta nova versão ainda mais deficiente do que a primitiva, segundo o parecer dos ditos juristas, será de toda a justiça que, mais uma vez, seja chamado a pronunciar-se o Tribunal que tem por especial missão cumprir e fazer cumprir a Constituição, a qual consagra a inviolabilidade da vida humana.

Quer o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre a inconstitucionalidade das normas constantes no novo diploma, ou não, o Chefe de Estado tem sempre a última palavra. Como qualquer outro cidadão, tem o direito e o dever de agir de acordo com a sua consciência. Foi, aliás, o que fizeram os deputados, na medida em que os programas partidários sufragados nas últimas eleições legislativas eram omissos sobre este particular e, nesta matéria, não foi imposta a disciplina de voto. Como católico, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa é, obviamente, pró-vida – nenhum verdadeiro cristão pode ser a favor da eutanásia – mas esta questão não é confessional, como se provou pelo voto contra dos deputados do Partido Comunista Português. Claro que o Presidente se poderia desculpar com a reiterada votação parlamentar, a eventual não discordância do Tribunal Constitucional, a crise política em curso, a recuperação económica pós-pandemia, etc. Mas estes argumentos, ou quaisquer outros, porventura suficientes para um Pilatos, não bastam para legitimar uma promulgação que seria, inevitavelmente, uma traição à letra e ao espírito da Constituição e a todo o povo português, em especial à ampla maioria que, conhecendo as convicções humanistas do Chefe de Estado, não só o elegeu como, recentemente, o reelegeu.

Promulgar, à pressa, uma lei que legaliza a eutanásia, que não foi referendada pelo povo português, nem suficientemente debatida pela sociedade civil – da nova versão deste diploma nem sequer ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) foi dado conhecimento! – e que foi, agora, aprovada à pressão, por um parlamento moribundo, de duvidosa legitimidade política, seria, decerto, levar a hipocrisia longe de mais.

Para a cobardia há sempre razões sem razão: é nos momentos difíceis que se conhecem os heróis. O Cônsul de Portugal em Bordéus soube sê-lo, como o Santo Condestável, que hoje se celebra no nosso país, num contexto particularmente trágico e sofreu as terríveis consequências desse seu acto. O futuro de Portugal depende agora, mais do que nunca, de alguém que conhece bem a Constituição, assim como a nossa História e cultura humanista cristã. Já que não faltam razões jurídicas para vetar um diploma inconstitucional, tem os poderes necessários para legitimamente o fazer e conta com a oração dos crentes e a confiança dos portugueses, espera-se que o Presidente da República, para o bem da nação e da sua alma, saiba honrar o legado moral de Aristides de Sousa Mendes. Chegou a hora de salvar Portugal de uma reforma legislativa que pode conduzir, segundo a CNEVC, à “liberalização incontrolável da ‘licença para matar’ e à barbárie”.