No dia de Portugal, o Presidente da República esteve no Terreiro do Paço e em Paris. Mas onde esteve Portugal no seu dia? O 10 de Junho é uma invenção do patriotismo liberal oitocentista, que substituiu o rei por um poeta como foco de identidade cívica. A república decretou o feriado e a ditadura de Salazar situou as cerimónias no Terreiro do Paço, com medalhas aos combatentes. Na década de 1960, o 10 de Junho era o dia televisivo de um Portugal militar e ultramarino. Um país do Minho a Timor, ainda imaginado como a continuação do reino de navegadores, guerreiros e missionários dos Lusíadas. A Pátria era um passado que não passava, um destino de serviço e de sacrifício.
Com a democracia, vieram outros 10 de Junho. As cerimónias migraram para a província, no sentido oposto ao dos movimentos da população. Foi o 10 de Junho das citações de Miguel Torga, telúrico, montanhoso, escolar. O dia lembrava também as “comunidades portuguesas”, os emigrantes oriundos do “país profundo”. O Portugal imperial, com os seus padrões africanos, deu lugar ao Portugal da “arraia miúda”, de mala de cartão. A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto era agora mais exaltada do que os Lusíadas, porque Fernão Mendes tinha sido tudo, inclusive escravo. Linda de Susa competia com Amália Rodrigues.
Mas em 1985, o regime decidiu escolher o 10 de Junho para a assinatura da adesão à CEE. Foi nos Jerónimos. Portugal estava agora na Europa. A expressão “como dizia o poeta” deixou de referir Camões, para designar Fernando Pessoa, que, segundo constava na imprensa, era lido em Paris. Começou a epopeia democrática das auto-estradas e dos mestrados. O 10 de Junho reconhecia agora não os portugueses heróicos, não os portugueses humildes, mas os portugueses de sucesso: além do político democrático, geralmente reformado, o empresário exportador, o cientista doutorado “lá fora”, o escritor traduzido, o desportista medalhado, o benfeitor com histórias comoventes de recuperação e de reintegração — enfim, todos os campeões de um país europeu, moderno, solidário, cheio de futuro e de auto-estima.
Depois do Conquistador veio o Emigrante, e a seguir o Campeão. Depois do Terreiro do Paço, os paços do concelho. E agora, com o país em crise há muito tempo? O Terreiro do Paço militarizado evoca 1966, e Paris é a iniciativa de que ninguém se lembrou em 1979, quando era moda honrar a emigração. Depois de imitarmos os outros, estamos condenados a imitar-nos a nós próprios? Não temos guerras, a não ser humanitárias, e a emigração de hoje, apesar de lamentada nos termos trágicos do passado, já não significa o fim de uma velha sociedade rural, “a salto”, mas a circulação de trabalhadores no espaço Schengen. É isso que o Presidente quis recordar em Paris, numa época anti-europeia? No Terreiro do Paço, dispôs as tropas, mas para atacar as “elites” e lisonjear o “povo”. Que significa tudo isto?
Portugal não tem de significar, para cada um dos portugueses, o mesmo destino. Mas Portugal deve ser, para todos, uma casa comum: um contexto estável, com regras claras, sistemas viáveis, alguns grandes princípios e objectivos: uma economia competitiva, um Estado equilibrado e transparente, segurança, uma justiça confiável, compromissos internacionais claros e firmes. Tudo neste momento parece em causa: a esquerda clama que a direita quer destruir o Estado social, a direita proclama que a esquerda vai precipitar a bancarrota. Grita-se, não se discute. O que a maior parte dos portugueses sente, hoje em dia, é incerteza e vulnerabilidade. É como se não estivéssemos em casa. Portugal, hoje, tem de ser estabilidade, ou não será nada. Precisamos de nos voltar a sentir em casa.