A publicação esta semana do relatório da comissão independente, à qual a igreja católica portuguesa encomendou um levantamento dos abusos históricos, gerou uma onda de justificada indignação nacional que espelha bem a referência moral que a igreja católica continua a ser para a esmagadora maioria dos portugueses, crentes e não crentes.

Por mais que a incidência do tipo de comportamentos ignóbeis em questão seja igual ou até menor entre pessoas consagradas do que entre leigos e outros cidadãos, designadamente em ambiente familiar, escolar, desportivo e prisional, a verdade é que a sociedade não tolera, e bem, que seja quem for de entre os dirigentes duma instituição que, não obstante a guerra sem quartel que lhe movem desde que foi criada, continua a ser a referência moral histórica da nossa civilização, tenham miseravelmente abusado da inocência de pelo menos cinco mil menores nos últimos setenta anos.

É portanto legítimo que a sociedade exija que os responsáveis da igreja católica indemnizem as vítimas que ainda o podem ser, e lhe deem a honra de o aceitarem, que reconheçam e repudiem a cobardia que esteve na origem do imperdoável encobrimento, sem o qual os abusadores não teriam tido a ocasião de repetir os abusos, e que façam um exame de consciência e encarem de frente a falta de fé que germina nas suas fileiras, em todas as gerações.

Isto dito, esta é também a hora para darmos graças pelos milhares de pessoas consagradas que, não obstante ventos e tempestades, continuam a remar contra a maré, dando testemunho do Bem, da Beleza e da Verdade e, mediante esse testemunho, a suscitar o que há de melhor na nossa sociedade em termos de entrega abnegada aos outros, especialmente aos pobres, aos doentes, aos prisioneiros e aos descartados.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

E em particular para darmos graças pelo celibato das pessoas consagradas, nomeadamente dos sacerdotes que, à imagem e na pessoa de Cristo celibatário, nos permitem participar em todas as missas no mesmo acto de redenção pelo qual os homens que caiam em si têm doravante a certeza do perdão.

Deus não incarnou para nos desvendar o mistério da dor que sofremos e que causamos, tantas vezes contra a nossa vontade, mas para a partilhar connosco e para a redimir, fazendo dela uma ferramenta de salvação própria e alheia, e é a intuição dessa verdade profunda, de que a igreja católica é depositária, que inspira o respeito de todos os que a compõem, e a admiração dos que, embora não a integrando, a conhecem de boa fé.

A nossa ascensão a estado soberano há quase 900 anos, a nossa história desde então e a nossa identidade actual são absolutamente incompreensíveis sem a igreja católica, à qual continuamos ligados por laços muito fortes mesmo quando a criticamos, ou até quando lhe dedicamos um ódio de estimação.

São responsabilidades obviamente demasiado pesadas para as forças meramente humanas dos católicos consagradas ou leigos que dão a cara pela igreja no nosso presente coletivo, mas que ainda assim são exequíveis porque a fé consegue mover montanhas.

A forte coesão social e consequente segurança que caracterizam o nosso país, nos causam saudades quando dele temos que sair e a ele atraem tantos estrangeiros que nele querem por isso viver, apesar da extrema pobreza e dependência causadas por levas sucessivas de políticas erradas, seriam certamente muito menores se não fossem as obras de misericórdia que a igreja católica pratica, o culto divino que assegura e a oração incessante das ordens contemplativas.

São milhões e milhões os portugueses e portuguesas vivos cujas consciências foram formadas por presbíteros, religiosos e religiosas de fé bem alicerçada, os mesmos que encontramos não só nos altares e nos confessionários, nos púlpitos e nas salas de aula como também, e sobretudo, nos lares, nos hospitais, nas prisões e debaixo das pontes, em todos os locais onde vivem solitariamente os que mais sofrem.

A igreja católica portuguesa não deve pois desanimar com a onda de justificada indignação que causou a publicação do relatório da comissão independente, muito menos deve fazer mais cedências doutrinárias para apaziguar os que a perseguem porque não toleram a sua fidelidade à chave do bem e do mal de que é guardiã, enquanto instituição transcendente.

Deve antes confessar-se, penitenciar-se e depois levantar a cabeça e continuar a prestar um culto divino cada vez mais belo, a orar com mais fervor, a pregar com firmeza a verdade sobre o Criador e a Criação, e a praticar humildemente obras de misericórdia.