Vários estudos europeus mostram que Portugal se atrasou tremendamente em matéria de transporte ferroviário. Na modernização da rede, na compatibilização com os sistemas europeus e na adoção de comboios de Velocidade Alta e de Alta Velocidade. Esse atraso inclui o desperdício de cofinanciamentos da UE para promoção de transporte competitivo, sustentável, rápido, confortável e moderno.

Isso resultou de más decisões políticas por parte de sucessivos governos, desde o final de século passado, desperdiçando o conhecimento técnico que há décadas aponta o comboio como o transporte do futuro. Um relatório do Tribunal de Contas Europeu, que analisou os investimentos em transporte ferroviário desde o ano 2000, mostra que Espanha conseguiu, no que toca ao cofinanciamento por Estado-Membro até 2017, arrecadar mais de 47% de investimento de fundos comunitários para construir ferrovia de Alta Velocidade, mas que Portugal não chegou aos 4%, ficando muito abaixo da média europeia. Nesse período, a UE investiu 23,7 mil milhões de euros em infraestruturas ferroviárias de alta velocidade, mas este tipo de transporte nunca chegou a Portugal.

Façamos, por isso, justiça aos Ministros João Pedro Matos Fernandes e Pedro Nuno Santos por terem colocado o tema na agenda política do Governo e por terem anunciado o recurso aos fundos disponíveis (nomeadamente do PRR) para que se inverta o paradigma. Dessa agenda fazem parte os anúncios de investimento em sistemas de Metro e na ferrovia pesada, nomeadamente no comboio de Alta Velocidade. Portugal já chegará tarde ao futuro, mas podemos dizer que está a entrar nos carris.

A questão é se o fará bem ou se a “decisão política” será ou não influenciada pela mercearia partidária e se, mais uma vez, se sobreporá à racionalidade técnica.

No caso da expansão das redes de metropolitano é precisamente isso que parece estar a acontecer e os primeiros sinais, que esta semana chegaram do projeto do TGV, auguram algo ainda pior.

Sobre o Metro do Porto, a história já nos tinha oferecido desastrosos resultados, quando, na génese, se colocou a mercearia política à frente da racionalidade. Falar da famigerada linha da Trofa (a quem arrancaram a via do comboio para nunca colocar a do Metro) ou da absurda linha da Póvoa, que piorou a rapidez e eficácia do serviço que era mais regional do que urbano, é explicar como se podem delapidar milhares de milhões de euros em transporte ferroviário e, no fim, deixar populações mal servidas.

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Estes dois exemplos caricaturais servem para invocar outra realidade menos percetível, mas significativa e que deveria influenciar os novos investimentos na rede. Nos seus extremos, o sistema da Metro do Porto perde interesse e procura, sobretudo fora do Porto cidade, o que faz crer que o metropolitano apenas é realmente competitivo na malha urbana de alda densidade. Isso mesmo é evidente nas últimas estações das linhas de Gondomar e Matosinhos, onde é frequente vermos composições completamente vazias.

Só razões paroquiais e de preenchimento do “mapa cor-de-rosa”, podem justificar estar neste momento em curso a construção da extensão da linha de Gaia, desde Santo Ovídeo (que está longe de ser o centro de alguma coisa), até uma espécie de “crime urbanístico e social” chamado Vila D’Este.

Duvido que alguma vez alguém venha a comparar publicamente os estudos de procura que justificaram a decisão da construção daqueles absurdos quilómetros de Metro, com a procura real que iremos encontrar quando estiver a funcionar. Fica o repto aos jornalistas para, findo o primeiro ano de funcionamento, solicitarem os números.

As pessoas da Vila D’Este não têm direito ao Metro? Sim, a questão é se as poderíamos servir tão bem com outras soluções e guardar o investimento em rede de Metro onde ela é a solução mais racional ou mesmo a única possível (na verdadeira malha urbana de grande densidade). Por exemplo, a zona do Campo Alegre e de toda a zona mais ocidental da cidade do Porto, permanece sem Metro e sem perspetiva de o vir a ter, pese embora esteja estudada a sua inserção ao longo de mais de 20 anos e seja evidente o seu interesse, pertinência e até rentabilidade.

Em lugar da linha mais curta – ironicamente denominada “Linha Rosa” – atualmente em construção, apenas entre a Casa da Música e São Bento, poderia estar agora em curso o cumprimento desse plano de levar o Metro à Boavista, Foz e Campo Alegre, repentinamente subjugado à “prioridade” de fazer quilómetros para Sul, entrando nos subúrbios de Gaia. E este é um bom exemplo de como a necessidade de alimentar o “mapa cor-de-rosa”, matou a lógica de mobilidade metropolitana, deixando para trás, uma área urbana de alta densidade, de ensino, habitação, serviços e da “zona financeira” da cidade do Porto.

E, quando se pensava que, em 2021, a chegada do PRR iria proporcionar, agora sim, a concretização de tal desígnio desde sempre inscrito nos planos da Metro do Porto e expandir, finalmente, a rede à zona ocidental da cidade do Porto, uma nova “decisão política”, tomada em plena pandemia e sem qualquer discussão pública ou política, desvia, mais uma vez, o investimento para Sul e para Oriente. Ou seja, para Gaia e Gondomar, alimentando outra vez o “mapa cor-de-rosa”, através de novos traçados, nunca antes estudados, mas agora riscados pelas próprias mãos dos autarcas. Decisões políticas que, sem debate público, fizeram tábua rasa de décadas de estudos técnicos e que, de novo, deixam para trás o Porto, em detrimento do “mapa cor-de-rosa”.

E assim, as freguesias mais ocidentais da cidade do Porto vão mesmo fica sem Metro, provavelmente para sempre, o que acontece depois de lhe terem tirado o elétrico da Boavista, “porque ia ter Metro”. Nem estudos técnicos, nem a racionalidade puderam alguma vez justificar que a maior avenida do Porto, que sempre se quis moderna e como centro financeiro e de serviços da cidade, seja privada do principal meio de transporte urbano, para sempre. Nem estudos técnicos, nem a racionalidade puderam alguma vez justificar que os habitantes da zona urbana mais estruturada, com maior potencial de crescimento em qualidade, sustentabilidade e valorização da segunda cidade do país vá ficar sem Metro, porque ele é mais necessário a atravessar o “mapa cor-de-rosa” de menor densidade, obrigando a novas pontes, obras de arte complexas e soluções técnicas arrojadas, para servir menos gente, menos cidade e para replicar o erro de estender antenas num tipo de transporte inadequado ao suburbano. Apesar de décadas de estudos de procura favoráveis, de projetos bem pagos e até de obras de compatibilização realizadas e pagas pelo erário público, como as que foram feitas no troço mais ocidental da Avenida da Boavista. Ficam sem metro porque o “mapa cor-de-rosa” se sobrepôs a tudo isso e também à racionalidade.

E a quem me disser que não é assim, terei todo o prazer em oferecer-lhe fotografias de estações de Metro que, depois de inauguradas, ficaram mais de uma década encerradas, no meio de campos agrícolas, onde não há passageiros, como acontece na Linha da Póvoa, ou imagens do serpentear rural do Metro em Gondomar, por onde se passeia, muitas vezes vazio.

Para os portuenses da Boavista, da Foz e do Campo Alegre, para empresas como a Euronext ou os hotéis da zona comercial da Boavista, que vivem penalizados por se terem instalado na urbe não “cor-de-rosa”, foi-lhes prometida agora, qual pedra filosofal, a solução “Metrobus”. Trata-se de um conceito terceiro-mundista e suburbano, que nem sequer é ajustável ao baixo calibre da maior parte das vias no Porto, que nada vem acrescentar às soluções de BUS já existentes e que é um degrau abaixo do velho elétrico que, um dia, lhes tiraram… “porque iam ter Metro”.

Mas este novo e mais recente desvio de investimento da Metro para o “mapa cor-de-rosa”, teve outra consequência, a necessidade da construção de uma nova travessia junto à Ponte da Arrábida. Travessia essa cujas soluções têm sido contestadas por muito boa gente, entre os quais reputados arquitetos e até “Pritzkers”. Acontece que essa nova ponte, independentemente da solução que venha a ser adotada, tem um outro efeito: inviabiliza o melhor canal pensado nos estudos realizados para a RAVE no início deste século, com vista à entrada do TGV na cidade do Porto. É que era precisamente ali que o comboio de Alta Velocidade deveria atravessar o Douro, rumo ao seu términus, no Aeroporto.

E, assim, sem o espanto imediato de autarcas, oposição e até governantes, sem qualquer discussão pública ou política, sem anúncio governamental ou metropolitano, saiu esta semana da cartola do Senhor Presidente da Câmara de Gaia, um coelho chamado anúncio da “Grande Estação de Santo Ovídeo”, onde o TGV será recebido com rosas, algures nos anos mais próximos. Nas palavras unilaterais do próprio autarca, durante uma reunião na Câmara a que assistiam jornalistas, Santo Ovídeo será a nova “Montparnasse”. E assim, através de notícias na imprensa, citando o autarca de Gaia, o país ficou a saber os mais importantes pormenores de um dos seus mais caros e importantes investimentos deste século: o TGV, que custará, para já, qualquer coisas como mil milhões de euros.

Sim, os pormenores, as soluções, as opções que custarão centenas de milhões de euros no “sonho” chamado TGV, não são anunciadas ao país nem discutidas com o país nem pelo Primeiro-Ministro, nem pelo Ministro das Infraestruturas, nem pela CP, nem pela RAVE, nem pelos autarcas de Porto e Lisboa. São anunciadas, em pleno mapa cor-de-rosa, pelo autarca de Gaia. Como definitivas, como suas.

Não bastasse, o que é anunciado é pouco mais do que absurdo. Segundo o inopinado anúncio de tão consolidada “decisão política”, o TGV “cor-de-rosa” não se fica pela íngreme subida ao alto de Santo Ovídeo, para dali contemplar a Torre Eiffel. Segundo o autarca cor-de-rosa, que substitui o Governo enquanto a Assembleia da República não toma posse, dali descerá até a um conveniente apeadeiro em Campanhã, a única freguesia “rosa” do Porto, onde parará enterrado, pois o terminal entretanto construído para os autocarros, já lhe tirou espaço à superfície. Poderia pensar-se que este rumo ao interior do concelho, afastando-se do seu destino final mais litoral, se deveria ao aproveitamento da Ponte de São João, projetada para receber o TGV ainda no Século XX e hoje a um terço da sua capacidade. Mas não, o país “cor-de-rosa” é suficientemente rico para mais uma nova ponte, igual, mesmo ali ao lado. E mesmo ao lado de uma nova terceira ponte, já anunciada pelo mesmo autarca, e já em concurso, destinada ao trânsito rodoviário que se quer… diminuir.

E vamos, assim, em três (3) novas pontes sobre o Douro entre o Porto e o “mapa cor-de-rosa”, todas a ser construídas ao mesmo tempo. Todas cor-de-rosa. Tantas pontes como as anunciadas pelo massacrado Luís Filipe Menezes, na sua campanha de 2013. Aquela campanha em que foi acusado, precisamente por isso, de ser megalómano, esbanjador e irresponsável. E de querer fazer na Rotunda da Boavista o Jardin des Tuileries, que, afinal, não é assim tão longe de Montparnasse.

Mas o TGV, agora na sua segunda personalidade de comboio suburbano, ainda não ficará por Campanhã. Ao ritmo de outro qualquer comboio, seguirá para Pedras Rubras, de onde se tinha afastado, cumprindo, depois de três apeadeiros de luxo e de uma longa curva, a sua missão de chegar, contornando toda a cidade do Porto, que lhe dá sentido ao destino, ao seu términus no Aeroporto. Tudo por decisão política. Tudo anunciado pelo autarca de Gaia, como a “decisão política”, na Câmara de Gaia.

E foi assim que esta semana o país ficou a saber que que não precisa de Governo para nada, porque o “mapa cor-de-rosa” avança mesmo antes da tomada de posse que Marcelo Rebelo de Sousa há-de proporcionar ao futuro Primeiro-Ministro. O “mapa cor-de-rosa” já tem vida própria e será sempre capaz de anunciar ao Mundo uma mega-estação de comboios num sítio onde não cabe (porque o que existe em Montparnasse é uma mega-estação de comboios que nem em dez “Santos Ovídeos” caberia). E que o Porto ficará com um moderníssimo apeadeiro enterrado na sua mais periférica freguesia, e que ganhará, um dia, um magnífico “MetroBus”, ali para os lados da Foz. Sempre, por decisão política.

Dito de outra forma, o TGV que chegará numa hora de Lisboa ao Porto, despejará primeiro os seus passageiros em Gaia, e seguirá depois, lentamente até ao Aeroporto, contornado a cidade que apregoa como destino, não sem antes fazer um stopover que deixará os passageiros a mais de meia-hora de qualquer coisa, por Metro, perdendo assim a sua competitividade e ajudando a saturar a já saturada rede de Metro urbana, onde o “mapa cor-de-rosa” impôs o seu desinvestimento. A extrema velocidade, de ponto a ponto, sem paragens e sem transbordos, perdeu-se algures em Santo Ovídeo, bem perto do gabinete que do presidente da Câmara que anunciou a maravilha ao país e se mudou para Monparnasse.

É preciso uma razoável dose de provincianismo para chamar a Santo Ovídeo, Montparnasse (que por sinal fica na cidade de Paris e não numa das cidades limítrofes) e para se achar que o TGV pode parar em apeadeiros de três em três quilómetros. E é preciso não ter mundo para não saber como e onde são implantadas as estações de Alta Velocidade em todo o Mundo.

Em Paris, estão no coração da cidade, próximas do que interessa e do destino final dos seus passageiros, como é Montparnasse, Gare de Lyon ou Port Maillot, dependendo da linha. Sobretudo, não param em três apeadeiros em dez quilómetros, nem contornam, por concelhos limítrofes, a cidade. Em Madrid, a estação de Atocha é o centro geográfico da metrópole, com as Portas do Sol “walking distance”. A Central Station de Amsterdão é o olho do furação da cidade, a dois passos do seu centro financeiro e mesmo ali ao lado do Red Ligth District. Em Estocolmo, no centro financeiro e comercial da cidade. Em Oslo, no seu centro nevrálgico. E podíamos continuar a falar de Polónia, Alemanha, Dinamarca, Noruega, Itália, Inglaterra ou Suíça, onde as grandes estações levam o passageiro do transporte de velocidade alta ao centro das cidades, sem stopovers e rentabilizando a sua grande vantagem: a rapidez. Para não ter que falar do Japão, onde o transporte rodoviário é a base da mobilidade há décadas. Vejam onde estão as estações centrais em Tóquio. Procurem saber o que é Shinjuku, onde fica, quem serve, quantos passageiros serve. Se não conhecem, por falta de mundo, ao menos, procurem no Google.

A aposta no transporte ferroviário é a melhor notícia dos últimos tempos e a melhor das opções inscritas no programa do Governo e no PRR. Mas é bom que não seja, como parece, mais uma oportunidade perdida, tomada pelo provincianismo do “mapa cor-de-rosa” decretado a partir de Gaia, pelos vistos, consentido pelo Porto e por Lisboa. Sem planeamento. Ou melhor, com total desprezo pelo planeamento.

Espero bem – mas não estou otimista – que, em nome da velha e pequena política de capelinhas não se volte a esgotar mais uma oportunidade, como tantas vezes tem acontecido com pontes, aeroportos e tantos investimentos replicados, mal estruturados e não sustentáveis, que têm vindo a ser feitos e que consomem recursos e fundos europeus e queimam oportunidades, atrasando o país. O TGV e a expansão da rede de Metro custará, com composições incluídas, a custos de hoje, mais de 3 mil milhões de euros. Não deixemos que seja, mais uma TAP, mais um BES, mais um BPN. Mas, pelo menos, devolvamos alguma dignidade e consideração aos contribuintes que pagam a conta e se lhes permita a discussão pública, a transparência e formalidade do anúncio. Antes de uma reunião com jornalistas na Câmara de Gaia.

O mais constrangedor de tudo isto, não é sequer isto estar a acontecer. É já acontecer sem escândalo, sem oposição, sem crítica.

Se estas histórias mostram que Portugal é um país sem mundo, agora deslumbrado na pequenez do seu novo mapa “cor-de-rosa”, também não restam dúvidas que o Porto e o Norte são uma Região sem rumo, sem cor e sem vozes. Se outrora o Porto foi “a cidade onde tudo se discute”, agora parece estar transformada na aldeia subjugada por Gaia e onde já ninguém tem permissão para questionar.