A manipulação das massas, a colectivização da culpa e o descrédito social são estratégias basilares dos Estados autoritários. “Se todos pagarem os impostos, cada um pagará menos”, garantem os sectários das diversas variantes do marxismo. A manobra, que habitualmente tem como resultado pagarmos mais, estimula a inveja para sinalizar como inimigo do povo quem ouse pôr em causa o esbulho fiscal. No moralismo primário do aforismo, está ainda implícito o apelo à denúncia.

A denúncia é uma peça importantíssima nas engrenagens fascista e comunista (se é que há diferenças suficientes para decompor a adjectivação). A viabilidade de um regime iliberal aumenta de modo considerável com o apoio, ou, pelo menos, a cumplicidade silenciosa, de uma parcela expressiva da população. Caso conceda a cada cidadão a licença de vigilância, facultando-lhe um poder espúrio, e sobremodo perigoso, o sistema fica dotado de uma terrível eficácia. Se a tudo isso conseguir acrescentar o aval de uma eleição, torna-se praticamente inexpugnável.

O chamamento à denúncia distribui culpa e poder com o objectivo de agilizar a submissão dos impulsos individuais a uma vontade colectiva de antemão construída. Ao longo da sua filmografia, Fritz Lang, o realizador alemão que no início da década de 1930 fugiu do nacional-socialismo para Hollywood, sondou, de forma magistral, o conflito entre o indivíduo e a comunidade, a idiossincrasia das multidões, a irracionalidade da mentalidade de grupo e todas as situações em que a ética convencional hesita. As divergências entre os interesses privados e colectivos, quando encenadas por Lang, transcendem análises de custo e benefício e esquivam-se à frieza de qualquer teoria consequencialista. Ao mesmo tempo, reclamam valores inegociáveis.

Neste artigo, gostaria de regressar, pela mão de Lang, ao cinema, meio singular de reflexão sobre a realidade contemporânea, para tentar formular algumas questões sobre a responsabilidade individual e social. O grande cinema partilha com a ópera a aspiração à arte total, um carácter litúrgico e comunitário (quando contemplado no ambiente para o qual foi concebido), e um pendor para a elisão que, uma vez cumpridas as exigências do entretenimento, deixa o canal aberto para uma legião de comentários. No decurso do século passado, o cinema foi ocupando o espaço da ópera nas preferências do público, relegando-a para um recesso exclusivista que nunca foi o seu. É provável que o futuro, caracterizado pela difusão personalizada da arte recreativa (que é cada vez menos arte e mais recreio), não tenha lugar nem para um nem para outra. A perda de sensibilidade à experiência artística gregária é, paradoxalmente, uma das consequências da nova colectivização, favorecida por uma rede global que mais parece um tópico da mirmecologia. No entanto, não é o declínio da cultura que me traz aqui hoje. Voltemos a Lang.

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A justiça popular é transversal à obra de Fritz Lang. Em Fúria (1936), o tema é abordado no seu formato mais tradicional: o linchamento de um inocente por uma multidão descontrolada (a grandiosidade do filme resulta da ulterior inversão dos papéis). No entanto, é com Matou (M), de 1931, obra sublime, no sentido rigoroso do termo, do primeiro período alemão do cineasta, que o assunto se descobre em toda a sua riqueza e complexidade. Não se trata, neste caso, de um inocente. Bem pelo contrário: o homem perseguido pelo tribunal popular é um assassino de crianças, obsessivo e psicótico. Além do mais, o tribunal não é formado por um grupo de cidadãos exemplares. Promovido pelos chefes do crime organizado, nele sentam-se delinquentes de rua, cujos interesses estão a ser lesados pelo empenho da polícia na perseguição do assassino. E engana-se quem pense que, no final, a gradação qualitativa ou, no mínimo, quantitativa do mal nos permite determinar uma fronteira ética e fazer um juízo seguro. A intervenção do infanticida empurra-nos para o mistério do livre-arbítrio e transforma todas as certezas em dúvidas.

O desconforto que Matou suscita é espoletado logo no segundo segmento do filme, depois da revelação do “monstro” e antes da sua captura pelos vigilantes. Nesse entremeio, Lang desafia-nos com a imagem de uma sociedade destroçada pelo medo. Sucedem-se as denúncias anónimas, umas por convicção da culpa do visado, outras por mesquinhez ou ajuste de contas. Na rua, qualquer suspeita progride sem demora para um ensaio de justiça sumária. É este relato cinematográfico do pânico e do ódio latente que levou alguns comentadores, mal-grado a objecção do próprio autor, a interpretar Matou como obra premonitória da ascensão nazi. Conjecturas à parte, o que fica é um retrato desassombrando da natureza humana.

Se a génese política de Matou é controversa, Os Carrascos Também Morrem (1943) assume-se como libelo antinazi – ainda que Bénard da Costa, na folha da Cinemateca dedicada ao filme, alvitre a possibilidade de o antinazismo ser apenas um pretexto. Nesta obra-prima da sua fase americana, Lang constrói uma ficção em torno do assassinato (real) de Reinhard Heydrich, oficial das SS, governador da Checoslováquia ocupada e um dos operários do terror nacional-socialista. Heydrich foi morto em 1942 por um comando militar enviado pelo governo checo no exílio. No filme, é o Dr. Svoboda, médico e membro da Resistência, quem se encarrega da execução. A partir dessa ocorrência, desenvolve-se uma intriga sem protagonistas, movida pelo engano, a inversão moral e a dispersão da culpa. Eis a sinopse possível.

Consumado o atentado, as forças de ocupação declaram o recolher obrigatório durante a noite e encerram todos os restaurantes, cafetarias e teatros de Praga. Após as primeiras averiguações, a Gestapo, incapaz de capturar Svoboda, toma 400 civis como reféns e ameaça executá-los se o assassino não se entregar. A táctica vem nos manuais: o castigo colectivo e a transferência da culpa para a dissidência é um dos expedientes mais característicos dos Estados autoritários.

Um dos reféns é o professor Novotny, pai de Mascha, a mulher que, de forma espontânea, ajudara o médico a fugir. Novotny insiste, desde o início, no imperativo do silêncio, e mantém-se-lhe fiel mesmo quando se encontra na mira do pelotão de fuzilamento. Mascha, desesperada, quase cede à tentação da denúncia e o espectador fica com a ideia de que só não a consuma porque percebe que, em consequência de ter ajudado o assassino, ela, o pai e os restantes familiares serão inevitavelmente castigados com a morte.

A dada altura, o dilema atinge o máximo de tensão e o médico decide entregar-se. Quem o demove é um parceiro da Resistência, alegando a imprescindibilidade de Svoboda para o sucesso do movimento. Não obstante a aparente insensibilidade da razão que é invocada, é precipitado julgá-la como egoísta ou fundada no desprezo de centenas de vidas em favor de uma. Em determinadas circunstâncias, nem o formalismo moral das ideologias do bem comum consegue conceder dignidade à aritmética da vida humana. É um valor mais alto, primário, que se faz ouvir. Lang inverte os contos morais – um sacrifica-se por muitos – para representar uma luta individual pela liberdade que conta com o apoio de uma cidade. O massacre dos reféns não decorre da putativa cobardia de um homem que acabara de arriscar a vida por uma causa: o horror é da exclusiva responsabilidade dos agentes da tirania em vigência.

Depois de algumas peripécias e da morte de dezenas de prisioneiros, o problema é mitigado com o sacrifício de um inocente. Inocente da morte de Heyrinch, note-se, mas culpado de delação e colaboração com o inimigo, pois Czaka, o cervejeiro incriminado pela Resistência, é informador da Gestapo. O totalitarismo, apesar de, num primeiro momento, pagar a traidores, acaba sempre por devorar os seus cúmplices.

Há um detalhe na definição das personagens que lança alguma luz sobre as intenções de Lang, e que talvez explique os conflitos com os argumentistas, os comunistas Bertolt Brecht e John Wesley. A condução da história está nas mãos de um grupo de burgueses esclarecidos, nomeadamente um médico, um professor e a sua família, enquanto o proletariado é remetido para intervenções secundárias e ambíguas, como a ameaça de linchamento a Mascha quando esta pretende ir ao quartel da Gestapo denunciar Svoboda, e o conluio que imputa o crime a Czaka. O povo obedece a uma psicologia inescrutável e carecida de desígnio.

No alvoroço que sucede à morte de Heynrich, a comunicação social é apresentada como veículo forçado da propaganda nazi. Os jornais e as rádios anunciam as medidas de represália e outra coisa não se lhes pode exigir. Num sistema despótico, a comunicação social também está sujeita à jurisdição da polícia política. Há, no entanto, uma cena que merece alguma atenção. O homem a quem é dito que comunique aos reféns a decisão de disponibilizar-lhes uma hora de emissão de rádio para um apelo à rendição do assassino, é Jan Pestuca, editor do Vespertino de Praga. Pestuca entra na caserna aperaltado e ufano e fala aos presos com convicção. Os nazis concedem-lhe uma breve ilusão de poder, que ele exibe com orgulho. A cena recorda-nos que, nos média, como em todos os sectores de uma sociedade sujeita à ditadura, há resistentes, oprimidos e cúmplices. Quando lida no actual contexto internacional e, sobretudo, nacional, inspira-nos algumas perguntas.

Se a submissão dos média à discricionariedade dos Estados policiais é explicada pelos riscos de uma oposição visível, como se justifica a passividade dos jornalistas em democracia? Nas ditaduras, os jornalistas receiam a prisão ou a morte. De que têm medo os jornalistas, ao dia hoje, num regime, como o português, que se afirma livre? De um telefonema irado do Primeiro-Ministro? Da vigilância da PSP? Da incapacidade dos tribunais para assegurar a sobrevivência do Estado de Direito? Da pressão de chefes domesticados pelo dinheiro dos contribuintes? Seja o que for, não transmite uma boa imagem dos jornalistas.

A comunicação social portuguesa, que já nos habituou à apatia diante da propaganda, trapalhadas e abusos de certos governos, vestiu, com a crise sanitária, o uniforme de serviçal do poder. Enquanto o Governo actual, com a complacência da Presidência da República, viola a Constituição, proíbe a venda de livros e água, fecha negócios, empurra milhares de pessoas para o desemprego, assalta os lugares estratégicos da Justiça, e ainda se atreve a exportar as suas vigarices para a União Europeia, os jornalistas dizem aos cidadãos para terem medo, manipulam-nos no sentido de estes se fecharem em casa e incitam-nos à denúncia com reportagens à caça de transeuntes sem máscara. Enquanto a polícia entra em propriedades privadas sem mandato, solicita comprovativos de residência a quem é visto na rua a passear o cão, intimida os incautos com interpretações abusivas de uma lei já por si excessiva e pede explicitamente a colaboração popular na vigilância dos prevaricadores, os jornais e as televisões massacram-nos com advertências do perigo da extrema-direita e do populismo, numa renovação, agora com um alvo fixo, da estafada rubrica vem aí o fascismo. Até há pouco tempo, os recorrentes alertas para o fascismo pareciam a história do rapazinho que grita “lobo!”. Agora, assemelham-se a uma fusão paródica de fábulas que poderíamos descrever como a história do rapaz que grita lobo quando já tem os ursos a comerem-lhe as papas em casa (ou na cabeça).

No comentário e debate, a apostasia da ciência consensual é censurada, ou por omissão, ou através do recurso a espantalhos e caricaturas do contraditório. Os jornalistas portugueses são, neste momento, inimigos da sociedade aberta e devem ser tratados com a intransigência que se reserva aos cúmplices de forças antidemocráticas. Há excepções, como é óbvio, mas são emudecidas pela cacofonia do medo ou saneadas no meio de uma serenidade apenas possível num país adormecido.

A pressão hierárquica e o ambiente policial que se vive não desculpam a demissão de responsabilidades. Outros lutaram e mantiveram-se fiéis aos seus ideais em tempos e lugares muito mais complicados. Quanto à degradação do ensino e à falta de preparação científica e humanística (e humana), explicam alguma coisa – pelo menos o facto de que se escrevia muito melhor na imprensa desportiva de antanho do que na generalista de hoje —, mas não tudo. Sobra a cobardia e a má-fé. Em face da manifesta venezuelização de Portugal, a comunicação social parece aquela senhora vitoriana que, quando persuadida pelo argumentário darwinista, afirmou: “Será talvez verdade que o homem deriva dos símios, mas ao menos não o digamos. É melhor que não se saiba de tal!”

Termino, como comecei, com o cinema. Em O Homem que Matou Liberty Valance, um dos mais belos filmes de John Ford, há um repórter que, ao ter conhecimento da história verdadeira da morte de Valance, abdica, mesmo assim, de corrigir a versão popular. “Isto é o Oeste”, diz, “quando a lenda se converte em facto, imprimimos a lenda”. Na actualidade lusa, os jornalistas não só imprimem a lenda, como são eles próprios quem a inventa e conta, uma e outra vez, até esta se tornar um facto. Além disso, com lendas ou factos, os jornalistas do Oeste americano participaram na transição do estado selvagem para o Estado de Direito. Ao abdicarem da dúvida em benefício de consensos forçados, os Portugueses, ao invés, habilitam-se a viabilizar a ruína do primado da lei. A história julgá-los-á.