O prof. Marcelo pergunta-se se o Estado não deve intervir nos “media”. E suspeito que sabe a resposta: na perspectiva dele, é sim, claro que sim, mil vezes sim. Na perspectiva dos “media” tradicionais, também. Ainda o prof. Marcelo se aliviava daquelas profundíssimas questões, o “Público” corria a entrevistar uma “investigadora na área dos ‘media’”, assaz identificada com a angústia presidencial: “Marcelo apontou-nos uma bandeira, agora é preciso agitá-la de forma musculada”. Em simultâneo, um administrador da Global Media, que possui o JN, a TSF e o fantasma do DN, declarou a proposta “corajosa” (?) e merecedora de “reflexão” a cargo dos “partidos, dos operadores e da sociedade civil”. Um responsável da Renascença afirmou ser “importante alertar para a importância dos meios de comunicação social”. E, há cerca de um ano, o “publisher” (ena) da Cofina exigia um “plano de emergência” para o sector. O sector em peso desatou a agitar a tal bandeira de forma musculada, para não dizer desesperada.
À semelhança do prof. Marcelo, tenho dúvidas. Ei-las: descontado o oficial entulho salazarista da RTP e da RDP, o Estado não intervém nos “media”? De certeza? Significa isto que os “media” são o que são por livre vontade? E que a omnipresença de palavreado senil “sobre” bola não visa consolar os simples e distraí-los de um país em marcha firme rumo ao abismo, com ou sem pedreiras? E que os Louçãs, os Mendes, os Pachecos, os Césares, os Proenças, as Mortáguas, os Júdices e restantes paradigmas das nossas finas castas ocupam 97% do espaço “opinativo” apenas por obra e graça do seu brilho analítico, da originalidade do raciocínio, da excelência do verbo? E que a “cobertura” da aberração política que nos assombra desde 2015 é fruto de decisões editoriais conscientes e não um exercício de propaganda tão infantil que envergonharia Goebbels e Zhdanov?
Obviamente, não lembrarei o irrelevante episódio de um colunista reaccionário enxotado de duas publicações em três meses, por sugestão de cima ou bajulação de baixo. Mas se o Estado, ou a rede de “interesses” que enfim ocupou o Estado inteiro, não intervém nos “media”, parece. E não quero imaginar o que seriam os “media” assumidamente nacionalizados. Ou quero: seriam exactamente iguais aos “media” que temos, apenas mais abonados e, se possível, mais obsequiosos face aos senhores que mandam. Na essência, nada mudaria na respectiva “orientação” e nada mudaria no desprezo do contribuinte, que passaria a financiar do seu bolso os jornais e as televisões que não vê hoje e não veria amanhã. Para o prof. Marcelo, este passo é fundamental para proteger a liberdade e a democracia.
Como quase sempre, Sua Excelência não só não tem razão como se encontra nos antípodas da dita. E, como quase sempre, Sua Excelência sabe. Sabe, inclusive, que a subserviência primária – e, pelos vistos, voluntária – dos “media” aos donos disto tudo é que ameaça a liberdade e a democracia. Quando, por exemplo, a imprensa transforma um novo assalto fiscal numa demonstração da generosidade do dr. Centeno, que importa se a “notícia” é ou não consumida? Em qualquer dos casos, o cidadão termina roubado. Se os “media” se preocupassem com a liberdade e a democracia, o dr. Centeno andaria a perder eleições para a gestão do condomínio. Se os “media” se preocupassem com a liberdade e a democracia, não conviveriam “naturalmente” com a influência de estalinistas e aparentados no governo de uma nação europeia do séc. XXI. Se os “media” se preocupassem com a liberdade e a democracia, não poupariam um chefe de Estado exclusivamente concentrado em caucionar uma situação ruinosa enquanto troca de calções e consulta os índices de popularidade. Se os “media” se preocupassem com a liberdade e a democracia, talvez tivessem audiências suficientes para dispensar o peditório.
Onde estão as audiências? A maioria, que assiste a noticiários protagonizados por dirigentes desportivos, está em transe e, não tarda, em fóssil. O resto saltita por aí, à cata de informação não sujeita a censura prévia ou póstuma. Com maior ou menor rigor, e às vezes rigor nenhum, descobrem-na na internet. Peneirada uma imensa quantidade de entulho, aqui e ali, nas “redes sociais”, páginas pessoais ou “sites” de facto jornalísticos e independentes, acabam por sobrar algumas interpretações menos alucinadas da realidade. Nos “media” tradicionais, sobram unicamente a cegueira, que os impede de perceber as causas da sua agonia, e a obediência, que os leva a apoiar os esforços das castas nacionais e internacionais para, em nome da “liberdade” e da “democracia”, aplicar rédea curta à devassidão imprevisível que prospera na “net” (entre múltiplos avisos, a recente obsessão com a “direita do Observador” não engana). Além de não terem muito público, os “media” não têm muita vergonha.
E o mesmo se aplica a quem defende a sobrevivência dos “media” para defender a própria, ambas vinculadas ao caldo de compadrios a que se convencionou chamar regime. Não é a atitude “corajosa” de que alguém falou acima: é, por definição, o contrário. Em tempos, a ideia era ajudar o outro a terminar o mandato com dignidade. E os mandatos que já começam indignos?