João Galamba, um portento que servia o “eng.” Sócrates na internet e hoje serve o dr. Costa no governo, chamou “estrume” ao “Sexta às Nove”. Fez bem. O programa de Sandra Felgueiras é dos raríssimos produtos televisivos que ainda ousa beliscar o gabarito de quem manda, uma insolência intolerável na jovem República Popular Portuguesa. Felizmente, as insolências têm os dias contados. Não tarda, os Galambas desta vida não precisarão de perder tempo e paciência com insubordinações pela simples razão de que as ditas serão punidas – e, com certeza, evitadas – por lei.

A reboque de um “Plano Europeu de Ação contra a Desinformação”, maravilha que só por si prometia, o prof. Marcelo, um dos melhores presidentes do mundo, promulgou no passado dia 8 a “Carta de Direitos Humanos na Era Digital”, de facto o regresso formal da censura. Claro que, dado o nível de submissão do nosso “jornalismo”, já praticamente não havia o que censurar. Mas não convém facilitar. A “Carta de Direitos Humanos na Era Digital” não facilita: a liberdade de expressão deixa de ser um direito ou deixa de ser humana.

O documento é um primor. Após cinco artigos repletos de treta “ecuménica” e analfabeta, chega, naturalmente, o Artigo 6º. Diz assim, no ponto 1: “O Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação, nos termos do número seguinte.” À primeira vista, isto parece feito para combater as patranhas que o governo nos atira para cima. Não é. É justamente o oposto: o governo reserva-se o poder de nos atirar patranhas sem arriscar o contraditório, a que com alguma graça chama “desinformação”.

O ponto 2 desenvolve: “A censura terá somente por fim a perversão da opinião pública na sua função de força social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de todos os factores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a boa administração e o bem comum.” Ai, desculpem que esta era a cartilha do Estado Novo.

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Eis a cartilha do Estado Novíssimo, que se limita a rasurar “censura”, palavra feia, e faz “copy and paste” do resto: “Considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos.”

Antes que se desate a festejar o fim das trafulhices governamentais, susceptíveis de causar prejuízo público e ameaça aos processos políticos democráticos, eu traduzo o jargão socialista para português: “Considera-se desinformação todo o escrutínio das mentiras perpetradas pela oligarquia instalada, etc.” Em suma, contestar o PS passa a ser crime. Até aqui, era apenas uma impertinência inconsequente – como os sumiços de Manuela Moura Guedes, Camilo Lourenço e Ana Leal da televisão, e, no caso de um humílimo colunista, a expulsão do “DN” e da “Sábado”.

No referido Artigo 6º, a sabuja no cimo do bolo é a matéria do ponto 6: “O Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública.” Leia-se o PS subsidia uns compinchas para corroborar a propaganda. E o “Polígrafo” terá concorrência feroz.

Claro que é injusto responsabilizar unicamente o PS. Por falar em partidos, nenhum votou contra a dita lei. PS e PAN apresentaram-na, PSD, BE e CDS votaram a favor e o PCP, o Chega e a IL abstiveram-se. Ou existem parlamentares incapazes de compreender o perigo nas entrelinhas de um texto primário, o que é uma hipótese, ou todos os deputados acham razoável que se torture a verdade até que esta confesse e se adapte ao discurso oficial. Quem não tinha percebido, talvez perceba agora os resultados das sondagens (e, daqui em diante, das eleições): escolhe-se um partido por tique ou tradição, mas no fundo é indiferente. O relativo consenso nos atropelos à civilização a pretexto da Covid foi um indício. A unanimidade perante a imposição da censura é a confirmação de que entramos num regime de partido único, com siglas distintas para fingir pluralismo. As dissensões ficam-se pelo acessório, dos ciganos à TAP, do sr. Cabrita ao funcionamento das escolas. No essencial, o respeito pela pobre Constituição e, sobretudo, pela democracia não preocupa ninguém.

E “ninguém” inclui o bom povo, que há cinco anos assiste com pacatez ao advento da ditadura. Evidentemente, “ninguém” admite caminhar para aí, por muito que os passos sejam largos e evidentes. Além de maior flexibilidade nas contas, o que distingue o socialismo do salazarismo é a impostura lexical: pratica-se a coisa sem a designar enquanto tal. À semelhança da censura, a ditadura é um conceito antipático cuja aplicação, à imagem da reverência parlamentar, merece a aprovação da maioria. E, pelos vistos, a abstenção dos que sobram.

Mesmo que a forma o tente, o conteúdo não engana. Por decisão própria, a liberdade não cabe no futuro dos portugueses, que estão a ficar mais pobres, mais oprimidos e, para cúmulo, mais resignados. Poucos reclamam. Em breve, talvez nenhum o possa fazer.