Talvez por falta de patriotismo, oportunidade ou decência, prefiro viajar para dentro lá fora do que para fora cá dentro, pelo que não sou íntimo de boa parte do “país real”. Principalmente a sul. Por isso, não sabia que, antes da passada segunda-feira, 1 de abril, “era difícil viajar na Área Metropolitana de Lisboa”, para citar uma autarca dali. E não sei exactamente o que aconteceu desde então. Sei que o governo lançou um cartão milagroso para os transportes públicos. Sei que o cartão poupa aos “utentes” (desculpem) dezenas de euros mensais. Sei que metade do governo se enfiou nos ditos transportes para demonstrar essa revolução na “mobilidade” (termo técnico). E sei que o dr. Costa estava às 7.30 da manhã em Mafra e às 10.41 penetrou Setúbal, fresco como uma alface e luzidio como uma azeitona. Em meras três horas e pouco o primeiro-ministro percorreu 73 quilómetros, proeza notável nos idos de 1850. Ou, nos centros urbanos portugueses, em 31 de Março de 2019.

Sinceramente, não fazia ideia do atraso em que viviam as nossas gentes. E continuo sem fazer. Quanto tempo se demorava até agora, duas semanas? Não havia estradas para Setúbal? As pessoas iam a pé, a desviar-se de lezírias e salteadores? E hoje, inaugurou-se de repente a locomotiva a vapor ou, por insondáveis leis da física, o desconto no “passe” acelera a viagem por carroça? E o assalariado que dorme em Mafra, levanta-se a meio da noite e desagua no Sado quase ao almoço, não é despedido porquê? As questões acumulam-se.

Outra questão prende-se com o alargamento dos descontos, ainda que em dose minguada, à região do Porto. Para quê? Nos meus percursos por aqui, na vasta maioria prévios ao recente dia das mentiras, os mesmos 73 km percorrem-se numa hora, hora e meia com trânsito, duas horas com o eventual acidente. Só se demora três horas e dez se um camião-cisterna explodir na VCI e dois camiões-cisterna explodirem na Circunvalação. Ainda no último fim-de-semana cheguei a Guimarães (50 km) em meia hora, numa sexta à tardinha. E regularmente chego a Bragança em 90 minutos.

Sucede que eu uso carro. É claro que os carros, inventados e popularizados há já algum tempo, são caros de comprar e caríssimos de alimentar, devido aos impostos que o Estado cobra para financiar – com vasta generosidade, note-se – os descontos nos “passes”, sobretudo lisboetas. Porém, rodam com relativa velocidade e desembaraço. São tão úteis que aconselho aos governantes a respectiva utilização.

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Suspeito, porém, que os governantes não me ligarão nenhuma. Vi-os, com estes que a terra há-de comer, assaz contentinhos a mostrar os novos “passes” às câmaras dos repórteres que por acaso se encontravam nas exactas carruagens do dr. Costa, dos amigos do dr. Costa e dos familiares dos amigos do dr. Costa. Não acredito que o contentamento fosse simulado para propaganda: seria uma rematada pulhice em políticos de cuja honestidade ninguém duvida e uma imensa trafulhice em jornalistas cuja ética ninguém belisca. Estou convicto de que o séquito do dr. Costa abusará dos “passes” a ponto de estes se transformarem em pergaminho.

A alegria dos estadistas era com certeza sincera, e a de quem levou a vida a procurar mover-se nas imediações da capital em cima de burro, trotinete ou monociclo. E era a alegria de quem, doravante, pode erguer com o orgulho o “passe”, e “ir a Sintra comer queijadas, gelados a Cascais, marisco a Mafra, choco a Setúbal”, e “escolher as praias onde lhe apeteça ir, os ventos do Guincho, as da costa oeste, da costa azul”, além de “ir ao Parque Natural Sintra-Cascais, a exposições a Lisboa, ao teatro a Almada.”, nas bonitas palavras do dr. Costa.

Ignoro o que leva o ser humano médio a desejar ardentemente apanhar com os ventos do Guincho ou com o teatro de Almada, para cúmulo na companhia do conselho de ministros em peso. De qualquer maneira, é óptimo percebermos que, com os 20 ou 30 euros que economizam no “passe”, os trabalhadores sem capacidade de sustentar um automóvel poderão perder-se em folias gastronómicas e culturais a escassas horas de distância. É igualmente verdade que, caso não tivessem os rendimentos delapidados pelo Estado, inclusive para o patrocínio dos transportes públicos, alguns trabalhadores conseguiriam visitar ocasionalmente os restaurantes de Madrid e os museus de Londres – de resto mais rápidos de alcançar. E muitos conseguiriam, imagine-se a loucura, ter carro. Assim os deixassem escolher.

O que vale é que não deixam. Largados sozinhos e sem a devida orientação fiscal, os cidadãos tenderiam a tomar decisões temerárias e fatalmente irresponsáveis. No limite, não me surpreenderia que houvesse gente a gastar o seu dinheiro em benefício próprio, com previsíveis, e desastrosas, consequências. À semelhança do que calha ser público, os transportes são um excelente exemplo da importância de existirem uns poucos a subtrair em nome de todos o que é de cada um. De seguida, atafulham-se com tudo e devolvem um nada sob forma de esmola a uns tantos. É aconselhável celebrarmos o exercício com entusiasmo, quiçá com uma queijada de Sintra ou um choco não sei de onde. Também é aconselhável sermos terminalmente imbecis. Com ou sem “mobilidade”, não vamos longe.