O clima de autocelebração e inflação de discursos sobre a Europa parece ter esgotado todas as possibilidades de discursos e contradiscursos sobre a sua própria identificação. Cabe perguntar: o que é que vincula efetivamente os Europeus? O que os liga e, ligando, obriga?

Responder, nos dias de hoje, envolve uma dificuldade acrescida, dada a fixação no valor da novidade, como se tudo começasse agora, sem memória e sem projeto. A ideia de Europa tende a confundir-se com os valores e feitos da modernidade, alargando-se, num esforço ténue de fundamentação, à cultura greco-romana. Sobrevoam-se dez séculos pletóricos de história e que constituem na verdade o epicentro histórico da Europa. Referimo-nos à Idade Média, essa época que muitos apelidam ainda de «idade das trevas». Como escreve, por exemplo, o historiador Jacques Le Goff, «a Idade Média é a época do aparecimento e da génese da Europa, quer como realidade, quer como representação, configurando decisivamente o seu nascimento, a sua infância e a sua juventude».

Atestam-no os factos e os especialistas não divergem. «A Europa é a filha primogénita da Idade Média», crescendo no transcurso de uma de longa maturação, de concordia e discordia (ou de uma concordia sempre discors), antecipando muitas das Meditationes de Europa tão frequentes na modernidade.

Identificam-se três momentos capitais: fase carolíngia; progressiva autonomia do político durante a Baixa Idade Média; e o opúsculo De Europa, escrito em 1458 pelo humanista Aeneas Silvius Piccolomini (futuro Papa Pio II).

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Tudo começa com a criação e utilização de conceitos (além da conotação geográfica). A questão de uma identidade europeia levanta-se originariamente em meados do século VIII (c. 754). Um anónimo cronista moçárabe (possivelmente Isidoro de Beja), utiliza o termo europenses («os europeus») para classificar o exército que sob comando de Carlos Martel (dux Francorum) havia vencido os «sarracenos» na mítica batalha de Poitiers (732). Carlos Magno, o representante mais ilustre desta fase, é desde logo apelidado «príncipe da Europa», «imperador e príncipe do povo cristão» (Europae princeps, Rex, pater Europae, Europae venerandus apex, imperator et princeps populi christinai…). Paralelamente, assiste-se a uma intensa assimilação e metamorfose do saber greco-romano (Cassiodoro, Isidoro de Sevilha, Beda-o-Venerável, etc.). O termo europenses raramente voltará a ser usado, mas a distinção de significados (substantivo e adjetivo) ficara latente. Os séculos seguintes serão decisivos (XI-XIV). Neles emerge uma nova ordem jurídica e política, da qual resulta o triunfo da razão natural e da liberdade e a separação efetiva de poderes (religioso e secular).

«A laicidade», escreve o insuspeito Bernard Lewis, «é, no seu significado profundo, uma ideia cristã». Não é de estranhar por isso que tenham sido clérigos (cistercienses, franciscanos, dominicanos) alguns dos principais intérpretes da desdivinização do poder político, aliás quase sempre acompanhada por uma conceção tendencialmente democrática da titularidade da soberania (basta lembrar os nomes de Alberto Magno, Tomás de Aquino e Guilherme de Ockham). É também sem dúvida o caso do humanista do século XV Aeneas Silvius Piccolomini, a quem devemos o primeiro título dedicado expressamente à Europa (De Europa) bem como a criação do próprio adjetivo europaeus (1458). O motivo deve-se à usurpação de Constantinopla, capital do mundo bizantino («segunda Roma»), levada a cabo pelos turcos otomanos (1453), e que, para ele, representaria a «segunda morte» de Homero e de Platão, a «extrema ruína» da Antiguidade clássica.

Registe-se que o inimigo não é diretamente o islão, mas a destruição de uma certa forma de vida historicamente consolidada; prosseguira-se até uma linha de diálogo com o mundo islâmico (Raimundo Lulo, João de Segóvia, Nicolau de Cusa). Importaria cultivar as «letras» («humanidades, oratória e demais ciências») − que a queda de Constantinopla (Res publica literária) precisamente pusera em perigo. Escreve Piccolomini: «Não há na Terra bem mais excelente do que um intelecto esclarecido».

Uma cultura enriquece-se abrindo-se a outras culturas, com a amplitude da existência e especulação dos indivíduos que a compõem. Vocação universal e espírito de síntese, poderia ser o lema da Idade Média. Múltiplas matrizes a configuram (clássica, cristã, celto-germana-escandinava, judaica, bizantina, árabe), perdurando, no essencial, ainda hoje. Eis o berço da Europa moderna, a Europa do saber, dos valores universais e da fraternidade.

É a razão, como forma de pensamento, fortalecida pela dúvida e pela crença, que dá forma à Europa na sua essência e devir históricos, e que designa os limites dentro dos quais alguma coisa se pode designar europeia.

Claro que o passado apenas propõe, não impõe. Mas foi o significado medieval que fez gerar a questão da Europa nos debates posteriores, entrando mesmo na constituição de uma das questões filosóficas contemporâneas mais relevantes.

De um complexo itinerário, atesta-se a constância de uma «europeidade» definida por um olhar sobre todo o humano e sobre todo o cosmo, configurando-o em valores e obras. «A Europa é uma figura espiritual», pois «não há uma zoologia dos povos» (Husserl), alvo de uma tarefa histórica infinita, não acessível aos «diplomatas, gente de luxo, homens de negócios e caixeiros-viajantes», mas apenas àqueles que dela se «enamorarem» e forem capazes de «uma nova direção» (Max Sheler), exigindo um «superlativo absoluto» (Ortega y Gasset), devendo permanecer poliglota (Gadamer), sendo a «capacidade de ser todas as coisas», incluindo «o seu oposto» (Jaspers).

O islão volta a estar na ordem do dia, não por ser a religião, mas pela presumível identificação da esfera religiosa com as instâncias seculares, particularmente em termos de poder. Cabe reconhecer historicamente a inestimável ação do islamismo (bem como do judaísmo) na formação de uma «consciência» europeia, incompatível com qualquer espécie de teocracia ou hierocracia. Alfarabi (nascido no atual Cazaquistão ou Afeganistão), Avicena (Turquestão), Averróis, por um lado, e Ibn Gabirol (Avencebrol) e Maimónides, por outro, foram decisivos para a transmissão e comentário da herança filosófica grega, em especial a de Aristóteles.

A Europa nunca foi simplesmente Europa, sempre viveu debaixo de um fundo de autoquestionamento. A questão central continua a ser a (con)vivência humana, que supõe a contenção de extremismos, nacionalismos, imperialismos, suportados na alucinação da insularidade e do solipsismo. Face ao crescente esvaziamento do seu significado, a que os governos têm sido incapazes de responder, talvez devamos lembrar que o solo e a meta desse projeto agregador são a arte, a religião e a filosofia, as três grandes expressões originárias do espírito europeu e a exigência intrínseca ao pensamento cujo programa consista em distinguir para unir.