O poder das ilusões é uma coisa maravilhosa. E sobretudo patética. Para não admitir o que de facto são, os portugueses fingem-se convictos de que são “os melhores dos melhores”, citando a ladainha humilhante do prof. Marcelo. O método é repetirmos com maníaca insistência que somos insuperáveis nisto e naquilo, da bola aos chouriços, das peúgas ao azeite. De tanto entoarem o mantra, alguns, coitados, chegam a acreditar nele. Muitos, porém, permanecem ligeiramente cépticos: embora proclamem a superioridade pátria nos “sectores” – sei lá – do mobiliário ou da saúde, receiam no fundo estar errados e a fazer o que os clássicos da Antropologia designavam por figura de urso. A conversão dos cépticos dispõe da propaganda oficiosa, os “telejornais” que se encarregam, dia após dia, de entrevistar governantes nas imediações de uma inauguração, ou estrangeiros nas imediações dos Jerónimos, todos dispostos a confirmar as incontáveis virtudes deste abençoado país. Se um casal de belgas gosta disto, quem somos nós para discordarmos?

Quase literalmente, não somos ninguém. É a nossa sorte. Dado que o mundo mal dá pela existência de Portugal, Portugal costuma escapar ao escrutínio do mundo. Ambos beneficiam do arranjo. Excepto às vezes. Às vezes, um acontecimento fortuito ou um tique exagerado desperta atenções alheias e indesejadas. Às vezes, as notícias escapam ao controlo, ou aos objectivos editoriais do falecido DN. Às vezes, a realidade espreita e perturba as patranhas que nos oferecem e o idílio em que vivemos. A título de exemplo recente, sugiro o documentário sobre o desaparecimento de Maddie McCann, estreado na Netflix. Ali não há turistas seleccionados a louvarem a comida e a hospitalidade e as “startups”: há ingleses que olham para Sul e descobrem um território entregue a bárbaros, onde a polícia se destaca pela espectacular inépcia e a corrupção genérica serve de cenário para apaixonantes enredos. Em meia-dúzia de horas de programa, o mito do paraíso à beira-mar afoga-se com esmero. Mas nada afoga as ilusões dos portugueses, os quais, bem amestrados, tomam a crítica por um ataque movido a inveja. Não importa que, no caso, a “inveja” seja tão fundamentada quanto a da banca suíça face à estabilidade do BES.

Uma outra história actual e digna da estupefacção “externa” é a endogamia governamental. Na sua infinita ingenuidade, o povo garante que a família não se escolhe. A sério? O PS escolhe os familiares que pode e, não satisfeito, nomeia-os para os cargos públicos que não deve. Sendo engraçado que um dos argumentos contra a monarquia consista em impedir a ascensão automática de mentecaptos, também é verdade que a situação desta peculiar república, absolutamente trivial em exotismos marxistas, não é, vá lá saber-se a razão, comum nas democracias civilizadas. É aliás inédita a ponto de impressionar a imprensa espanhola, que habitualmente nos dedica a quantidade de páginas que reservamos às Berlengas: o “ABC” fala numa “rede de nepotismo sem precedentes em toda a Europa”, lembra a “rede de 27 pessoas com vínculos familiares no exercício do poder” e refere que “a indignação tomou conta do país vizinho”. Escusado dizer que se trata de uma série de calúnias, a desmentir com urgência.

A primeira calúnia é considerar que pertencemos à Europa, presunção que apenas funciona no momento de receber, com maus modos, dinheiro alemão. Fora isso, uma fotografia colectiva do governo basta para exibir não só os perigos da consanguinidade como uma tropa fandanga que, na aparência e no conteúdo, dificilmente se sentaria na assembleia estadual do Maranhão.

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A segunda calúnia são os 27 parentes, proverbialmente caídos na lama. O Observador já desenterrou quarenta e tal, e não duvido que uma pesquisa distraída pelas subsecretarias e chefias de gabinete alcance os 150. Além de que amanhã é um novo dia, e uma nova oportunidade profissional para dezenas de filhos, esposos, genros, primos e enteados dos vultos que nos guiam.

A terceira calúnia é a indignação que alegadamente nos assola. Qual indignação? Salvo por umas dúzias de excêntricos, a famosa “opinião pública” e a famosíssima opinião publicada não contestam o pagode socialista, na medida em que: a) acham que o pagode é normal; b) acham que o pagode é benéfico; c) esperam vir a beneficiar do pagode; d) já beneficiam do pagode. Entre a cretinice e o oportunismo, compreende-se a tendência do cidadão médio para a opinião informada. Se o “ABC”, o “El País” e os jornais que calhar realizassem com competência o seu trabalho, perceberiam que a notícia não é a rompante promiscuidade no governo: é a complacência de uma sociedade em peso perante a promiscuidade e perante o resto. O espantoso, na hipótese de ainda sobrar alguém que se espante, é a jovialidade com que os portugueses se permitem ser enxovalhados e roubados às mãos de uma legião de rústicos que nem possuem em manha metade do que lhes falta em vergonha.

Haverá, nos confins da Terra, populações mais oprimidas. Ou mais ridicularizadas. Ou mais burladas. Não haverá nenhuma que o aceite com este simulacro de orgulho. Nisso, e não nas peúgas ou no azeite, somos mesmo os melhores dos melhores. Ou uma desgraça sem remédio, consoante a perspectiva.

Nota de rodapé

O prémio “Uma Rotunda Em Cada Cruzamento, Dois Multiusos Em Cada Esquina, Três Sacos Azuis Em Cada Mandato” da semana vai para António Costa, com a frase: “O mundo seria muito melhor se fosse governado pelos presidentes de câmara”