Foi para aí há 15 anos que comecei a escrever regularmente nos blogues. Por essa altura, de forma surpreendente, surgiu na blogosfera portuguesa uma nova direita. Fresca, moderna e liberal. Parecia culta, escrevia bem, tinha a cabeça arejada e usava argumentos lógicos. Sendo Portugal um país tão estatizado, era difícil alguém liberal, mesmo que de esquerda, como eu, não se identificar com muitos dos argumentos e propostas que eram feitas.

Por um lado, o argumento de base do liberalismo, o de respeitar a liberdade individual, é bastante difícil de rebater. Por outro lado, as políticas económicas de esquerda que existem em Portugal são tão ineficientes e dependentes do Estado que é relativamente fácil pensar em alternativas mais liberais que atinjam os mesmos fins com menos custos.

Com o passar do tempo, fui-me apercebendo que o liberalismo muitas vezes mais não era do que uma fachada para dar um toque de modernidade ao que não passava de conservadorismo, quando não reaccionarismo. Terá sido com o referendo sobre o aborto que isso se começou a tornar óbvio. A forma como bloggers da nossa praça blogosférica liberal se opuseram à sua liberalização surpreendeu-me. Apesar de tudo, considerei compreensível. Neste assunto, é muito difícil definir o que é uma posição liberal, dado que há um conflito de direitos entre a mãe e o feto. O estatuto que atribuamos a este último poderá fazer pender a balança para um lado ou para o outro.

Já quando se começou a discutir outro dos chamados temas fracturantes, o casamento de pessoas do mesmo sexo (e, mais tarde a possibilidade de adopção por parte destes casais), ficou claro que os argumentos da liberdade individual eram, para grande parte da direita liberal portuguesa, puramente instrumentais. Muitos dos direitolas liberais portugueses estavam dispostos a sacrificar as liberdades individuais (como o direito de cada um casar com quem quer), usando golpes de rins argumentativos capazes de fazer inveja ao melhor dos guarda-redes, em nome de um conservadorismo que só a Igreja Católica defendia.

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Rapidamente, percebi também que o objectivo de parte da direita portuguesa não era, na verdade, o de desestatizar Portugal, mas sim o de substituir o Estado pela Igreja. Por exemplo, mais depressa defendiam que o Estado deixasse de reconhecer casamentos (de forma a que, na prática, as Igrejas ficassem com o monopólio dos mesmos) do que aceitavam que um homem casasse com outro homem ou uma mulher com outra mulher. Ou, num registo mais prático, no último governo de direita, ao mesmo tempo que cortavam nos apoios aos mais pobres, aumentavam o financiamento às IPSS e misericórdias.

Houve muita gente que se surpreendeu com o apoio que tantas pessoas de direita liberal portuguesa deram a políticos como Trump (de forma velada e relativamente envergonhada) ou a Bolsonaro (neste caso, de forma menos envergonhada). Mas, na verdade, nada disto é novo. Basta lembrar que, em 2007, na eleição do melhor português de sempre, não faltaram membros do Insurgente e do Blasfémias (os dois ex-libris da blogosfera de direita liberal portuguesa) a fazer de forma mais ou menos velada campanha por Salazar. Aliás, vale a pena lembrar que uma das personalidades da direita portuguesa que assumiu sem rodeios que votaria em Jair Bolsonaro foi Jaime Nogueira Pinto, que foi a pessoa encarregada de fazer o elogio a Salazar por ocasião da eleição do melhor português — diga-se, em abono da verdade, que nunca Jaime Nogueira Pinto se declarou liberal (pelo menos que eu tenha conhecimento).

Penso que todas estas eleições, desde Salazar a Bolsonaro, mostram que há uma direita portuguesa que gostaria de sair do armário e assumir aquilo que verdadeiramente é: uma direita iliberal e reacionária. E, para bem da clarificação da direita portuguesa, era importante que encontrasse o seu espaço eleitoral. Que sentido faz ter no mesmo partido gente como Adolfo Mesquita Nunes e como Francisco Rodrigues dos Santos? Um defende a liberdade do casamento, a livre adopção por casais homossexuais e o aborto despenalizado. O outro é contra o aborto, contra o casamento livre contra a adopção por casais do mesmo sexo. Podem fazer-se muito amiguinhos no congresso, claro, mas para quem vota é uma grande confusão. Com grande facilidade eu votaria em Adolfo Mesquita Nunes para me representar na Assembleia da República, mas, por exemplo, nunca na vida votaria num Abel Matos Santos, do mesmo partido, que acredita que os homossexuais devem ser tratados.

E esta mistura de liberais com reaccionários que há no CDS volta a repetir-se no PSD. Basta lembrar que Passos Coelho era candidato a líder do PSD em 2010, quando explicou que a homossexualidade não devia ser impedimento à adopção. Aliás, até considerava que tal proibição seria inconstitucional. Mas depois teve uma bancada parlamentar, pela mão do deputado bracarense Hugo Soares, a boicotar uma votação que permitia a co-adopção por casais do mesmo sexo — na altura, inventando um referendo sobre o assunto. Tendo eu votado no Passos Coelho moderno e liberal de 2011, não há forma de não me sentir traído pelo comportamento da sua bancada uns anos depois.

Em jeito de conclusão. A direita portuguesa está em crise e enquanto não clarificarem as suas posições não deixarão de estar em crise. Muito mais importante do que ter um CDS que põe a bolinha ao centro ou um PSD que se diz de centro esquerda, o essencial era haver dois partidos: um partido conservador e salazarento e um partido aberto e liberal. Depois, os eleitores que escolham.