1 As Forças Armadas outra vez? Outra vez, trago-as eu. Seríamos levados a crer que uma questão desta natureza e dotada desta “essencialidade” não se desvanecesse assim, após o Chefe de Estado ter feito dela a parte forte do seu discurso de 25 Abril ultimo. Mas quase desvaneceu. É certo que nos últimos dias se falou de militares, objectivos e prazos mas só um “bocadinho”. A actualidade determina e impera e no entanto é também de militares que se trata a actualidade na Ucrânia e na Rússia mas como é lá longe e se vê do sofá, exit Forças Armadas portuguesas. Conviria porém tomar boa nota das palavras vindas de Belém. A ferida que gangrena o tecido militar é larga e funda mesmo que, como bem se sabe, não seja de hoje, nem de agora. Há muito que devia ter sido intervencionada não fora uma espécie de biombo político-cultural que separa a esquerda do universo das fardas Para os protagonistas, decisores e militantes da ala esquerda do país, o assunto é “ de direita” e ponto final. Com uma leviandade estarrecedora a farda militar é quase exclusivamente associada a referências e valores cuja indispensabilidade na saúde dos países democráticos ou a esquerda não percebe ou não lhe interessa: a autoridade cheira-lhes a “mando” indevido ou mesmo perigoso e a ordem ou a disciplina lembram-lhes com frequência uma espécie de atentado às liberdades cívicas. Um estorvo que os confunde, em resumo.
2 E assim chegamos onde estamos (e onde muito provavelmente nunca antes tínhamos estado). Vale a pena lembrar que nunca como hoje os equipamentos militares se encontram tão à beira da escassez, no ar, no mar ou em terra; recordar que um praça do Exército, da Armada ou da Força Aérea ganha menos do que um policia; que as promoções estão a ser feitas com mais de um ano de atraso (ou não estivéssemos nós ainda a “usufruir” dos múltiplos efeitos das engenhosas cativações-marca-Centeno, aqui aplicadas às Forças Armadas). Que começa a ser preocupante o número de militares que estão a abandonar qualquer um dos três ramos das Forças Armadas. Ou ainda que o ambiente militar que não era bom, se agravou com algumas das nunca até hoje suficientemente bem explicadas trapalhadas ocorridas na passagem de João Cravinho pela Defesa. Trapalhadas, não. Os (evitáveis) dissabores, fossem produzidos pelo ministro ou promovidos pelo primeiro-ministro, foram muito além disso (e não se tenha medo das palavras ou se faça cerimónia com sensibilidades alheias ou hostis a este meio).
Houve vexames pessoais, humilhações, processos nem sempre claros, decisões polémicas. Decidir desagrada sempre e divide quase sempre. Mas neste arrastar infeliz de ocorrências a mancha do desagrado, de tanto que alastrou, não é facilmente ”limpável”: será preciso uma consciência tão aguda quanto sabedora das prioridades e o uso de uma sensibilidade que pelos vistos não é para qualquer um. Haverá? A tempo?
3 Tendo ambas estas coisas – conhecimento e sensibilidade – o Presidente da República, nascido, crescido e formado num meio onde se percebia o universo militar e se cuidava de o tratar com a conveniência que ele reclamava (não era preciso mais que isso mas isso, era indispensável) fez um dois-em-um no passado dia 25 de Abril: sinalizou aos militares que estava atento e alertou o país para uma dupla questão: a gravidade da situação em qualquer dos três ramos, e as funestas consequências para Portugal – dentro e fora de portas – dessa desgraçada soma de falhas, faltas, erros, nomeações, omissões e demissões.
Marcelo percebeu que com o andar da carruagem na Ucrânia e uma guerra na Europa o Comandante Supremo das Forças Armadas nunca podia deixar de intervir: sem maior investimento na Defesa, o país não conseguirá estar à altura das suas responsabilidades, para não falar de que internamente, a contestação militar, mesmo que surda, não fará senão subir perigosamente de grau e amplitude.
A tudo isto não foi obviamente estranho ter-se ouvido também de Belém e ainda antes de 25 de Abril o teor do discurso feito na tomada de posse do novo governo de António Costa: o Presidente, e logo de inicio, quis focar-se na invasão da Ucrânia pela Rússia, contextualizando a história e a política, abordando-as por diversos ângulos e elencando as mudanças abruptamente surgidas na cena europeia e internacional. Ao contrário do primeiro-ministro cuja intervenção poderia ter sido escrita antes de 24 de Fevereiro. o Presidente quis dar importância e pôr em relevo o que aí está e o que está é uma guerra na Europa que também nos diz respeito. Minutos depois e durante dias o que “se” reteve porém e quase obsessivamente foi a ida ou não ida de António Costa para um qualquer destino europeu havendo até quem se interrogasse publicamente sobre o porquê do Chefe de Estado tanto ter abundado “com a Rússia”.
4 Tudo quanto se soube até hoje – se me escapou alguma coisa, mea culpa – foi que o Governo já “tinha previsto” no seu OE, determinadas verbas para as Forças Armadas. Subentendido: o Presidente não apanhou os governantes descalços. Não se sabe quanto vale estar “previsto” nem quando se agilizará a operacionalidade das promoções atrasadas.
Sabe-se porém que talvez não seja suficiente haver só uma instituição – o Palácio de Belém – a levar a questão militar muito a sério.
Não chega.
5 Admito que o leitor – caso ainda ainda aí esteja… – se tenha enfastiado com esta prosa ou se espante de tanto afã militar meu. Olhe que não caro leitor. Apenas partilhei uma preocupação, louvando o Chefe de Estado por estar atento ao assunto e estranhando ser aparentemente o único. A questão não tem obviamente a ver com esquerda nem com direita. Nenhum país se respeita ou ganha respeito se não respeitar os seus militares, nenhuma pátria digna desse nome os pode menorizar desta forma.
Não se trata de “ir para a guerra” (por enquanto?). Os militares fazem muito mais coisas, cumprem mais missões, solucionam mais problemas, responsabilizam-se por mais tarefas, estão em mais lugares do que aquilo que se sabe ou se pensa. A formidável campanha de vacinação correu bem porque – não se duvide – estava bem entregue, o que uma vez mais se deve ao Chefe do Estado certamente alarmado – para dizer só isto – com um brincalhão que por lá passou antes.
Por tudo isto que não ẽ pouco, do que tentei tratar hoje foi da utilidade de alguma preocupada atenção em relação a este universo (goste-se ou não dele).