Já eram quase onze horas da noite quando bateram na porta de casa. Assustada, me levantei para ver o que era. Abri a porta e encontrei a Dona Maria, nossa vizinha de porta, vestida com seu roupão azul claro, suas pantufas, seus cabelos cor de neve e uma expressão tranquila, que logo afastou a hipótese de algum problema.

Desarmada, sorri para ela, dizendo “boa noite Dona Maria, como vai?”. Ela sorriu de volta, disse que estava bem e que só bateu na nossa porta porque nos queria dizer que fica muito feliz quando vê que a nossa entrada está cheia de sapatinhos.

Nós, como tantos outros, deixámos de entrar de sapatos em casa por causa do vírus. Mas ficámos alguns dias fora na semana anterior, portanto, não havia a já tradicional fila de sapatos. Mas regressámos, a bagunça se instaurou novamente e Dona Maria disse-me: “Fiquei tão feliz ao ver a porta encher-se de novo com os vossos sapatinhos esta semana. Gosto de tê-los cá, vizinhos.”

Parei para pensar brevemente e concluí que foi a coisa mais bonita que me disseram desde que começou tudo isso. Fiquei com os olhos marejados e lamentei não poder dar um abraço nela. Pensei na minha avó, do outro lado do mar. Pensei que, mesmo com tão pouco contato, somos, de alguma forma, uma companhia diária para Dona Maria, na solidão dos seus noventa anos, potencializada pela solidão imposta pelo vírus.

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Mas, acima de tudo, pensei no fato de que eu sempre disse que a noção de felicidade está sempre muito próxima da noção de nos sentirmos bem-vindos. É impossível sentir-se bem-vindo e não se sentir feliz de alguma maneira. A lógica é muito simples: o acolhimento tem um poder incrível.

E eu descobri, com a inesperada visita noturna de Dona Maria, que sou bem-vinda na minha própria casa. Não poderia haver confirmação mais agradável, especialmente numa fase em que até os que estão acompanhados se sentem sozinhos. E descobri que as nossas filas compridas de sapatos bagunceiros – que volta e meia acabavam por me deixar constrangida – também o são.

Quando, recentemente, apaguei as velas no meu bolo de aniversário, disse ao meu marido: “Pela primeira vez na vida, não vou fazer nenhum pedido. Eu já sou abençoada demais. Não tenho direito, nem necessidade de pedir mais nada.”

Percebi que eu tinha toda razão. Porque o que mais importa na vida é isso. Essas coisas miúdas nas quais, frequentemente, a gente nem sequer repara. Obrigada por ter batido em nossa porta, Dona Maria. Obrigada por vir simplesmente para dizer coisas boas. Talvez seja tudo apenas sobre isso: dizer coisas boas. Porque, convenhamos, todos nós estamos precisando.