Essa semana, Abel Ferreira, treinador português que atua no Palmeiras, foi alvo de duras críticas pelo jornalismo brasileiro. Após uma vitória de 3 a 1 sobre o Botafogo, o treinador se irritou com a pergunta de um jornalista, durante uma entrevista coletiva.

O Palmeiras teve um jogador expulso na partida e um jornalista brasileiro, ao entrevistar Abel, afirmou que a qualidade do Palmeiras não caiu em nenhum momento, que a consistência foi mantida e que o jogo parecia seguir com 11 jogadores contra 11, nitidamente elogiando a atuação da equipe e o trabalho de Abel na manutenção do rendimento da equipe, suprindo a ausência do jogador expulso com mudanças táticas e questionando como o treinador conseguia conduzir o time dessa forma tão impressionante.

Abel prontamente respondeu “é por isso é que eu sou treinador e vocês são jornalistas, se quiserem ser treinadores, vão à CBF, fazem o curso e sentam-se aqui no meu lugar, é isso que vocês têm que fazer”. A resposta foi recebida com perplexidade pelos jornalistas brasileiros, que não entenderam de onde veio a necessidade de uma resposta tão dura a uma colocação que não era de crítica, num cenário de vitória da equipe treinada por Abel, que está na liderança isolada do campeonato brasileiro, já muito próxima do título.

Jornalistas célebres do esporte brasileiro, como Mauro Beting e Chico Garcia, que tenho o privilégio de ter como amigos pessoais, criticaram publicamente o comportamento de Abel. Beting defendeu a classe dos jornalistas, dizendo que o colega não merecia a “patada gratuita” ou “carteirada desnecessária”. Chico se perguntou como um treinador vitorioso reage assim a uma pergunta elogiosa, desrespeitando o jornalismo como um todo.

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Sou a primeira a entender a crítica dos meus colegas e a me solidarizar com o jornalista que fez a pergunta a Abel na coletiva. No entanto, logo que vi a postagem do Chico, mandei uma mensagem a ele dando a minha visão do incidente como alguém que vive uma relação tão próxima com Portugal e com os portugueses.

Primeiramente disse que, depois de 8 anos em Portugal, me choco muito menos do que os brasileiros com a frontalidade do discurso português. Enquanto no Brasil damos muitas voltas para dizer algo desagradável, em Portugal as coisas são ditas de forma absolutamente direta. Tento entender o raciocínio de Abel: estou dizendo que minha equipe foi prejudicada pela expulsão injusta. Um jornalista articula um longo discurso dizendo que não houve prejuízo para o rendimento do time, me contradizendo, ainda que em tom elogioso. Logo, fui desautorizado por um jornalista. Afirmo, então, que eu é que sou o treinador e que sei analisar a questão e que jornalistas devem ficar em seus lugares.

Eu entendo o raciocínio. Mas acho que entram aí dois problemas sérios. O primeiro deles é uma questão de adaptação cultural. A resposta de Abel, em uma coletiva em Portugal, até poderia ser vista como aceitável, mas não no Brasil. Qualquer português que lide frequentemente com brasileiros sabe o quão sensível nós somos à forma portuguesa de se colocar. E acredito que os brasileiros que vivem em Portugal devem aceitar a diferença cultural e criar resistência a isso, como acredito que eu tenha criado ao longo dos anos. Todavia, um português que vive no Brasil, sobretudo quando figura pública, teve ter um zelo especial sobre a maneira de se colocar. Não dá para falar no Brasil do mesmo jeito que se fala em Portugal. O segundo ponto é sobre o treinador não legitimar o direito dos jornalistas esportivos a fazer análises tão relevantes dos jogos como aquelas feitas por treinadores. Algo como disputas entre médicos e enfermeiros. Um não deve tirar o lugar de fala do outro – há lugares diferentes que devem ser respeitados. Silenciar outro profissional não é uma opção, sobretudo quando estamos num lugar de poder.

Sim, eu entendo a fala de Abel e não a ouço com o mesmo grau de perplexidade que os outros brasileiros. Não tomo o comportamento como simples grosseria, porém como excesso de frontalidade. Mas, sabendo que o treinador pediu desculpas públicas ao jornalista nos últimos dias, também o convidaria a refletir um pouco sobre o lugar de fala dos jornalistas e sobre a adaptação do seu comportamento à cultura local.

Lembro-me de que na primeira vez que fui a Lisboa, perguntei num café o que era um leite creme. O senhor, impaciente, me disse “leite creme é leite creme! É creme… com leite, ora.”. Fiquei perplexa com a grosseria com uma cliente estrangeira que simplesmente não conhecia a sobremesa. Hoje faço a leitura de outra forma: o senhor ficou desconcertado com a pergunta. Provavelmente nunca foi questionado sobre a receita de uma sobremesa tão típica e reagiu com a frontalidade típica dos portugueses, sobretudo quando surpresos. Já não enxergo como grosseria gratuita dirigida a mim. Mas é preciso refletir. Quem lida com turistas e, principalmente, quem vive em outro país e se beneficia do mercado de trabalho dele nem sempre pode se dar o luxo de dizer as coisas de forma tão instintiva. É preciso cuidado com as palavras. É preciso cuidado com as pessoas.