“O sábio discute ideias, o comum discute factos, o medíocre discute pessoas.” (Provérbio chinês)

Vivemos tempos de fé. Num mundo de pouca realização espiritual, a fé transfere-se para a ciência. Como resultado, onde há anjos, também há demónios. Os demónios da moda são os Negacionistas.

Ciência (do latim scio = saber) significa conhecimento. Lida com racionalidade e estatísticas, lida com probabilidades e incerteza, implica tentativa e erro. É algo bem distinto de verdade e certeza.

Robert Merton afirmava que todas as ideias devem ser testadas e estar sujeitas ao escrutínio rigoroso e estruturado da comunidade. Carl Sagan foi ainda mais longe, com a tirada: “Alegações extraordinárias exigem evidências igualmente extraordinárias.” Era o próprio Sagan que lembrava sobre a necessidade de, neste caminho científico, sermos céticos, para não cairmos em armadilhas, o que é, aliás, segundo Merton, uma das normas que garante à boa ciência o respeito da sociedade.

Mas o que vemos é que a qualquer “se” que se levante/questione, logo o rótulo de negacionista lhe cai em cima…

Conhecíamos bem a qualificação no âmbito das alterações climáticas. Agora, estende-se à pandemia e, aos poucos, a tudo o que é assunto. Mas o que é um negacionista? Supostamente alguém que não acredite que o clima mude, ou que o coronavírus seja real, certo? Errado. Qualquer dúvida ou ceticismo é imediatamente apelidada de negacionismo.

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Este extremismo à volta de consensos, sob o disfarce de “boa ciência”, é mais propaganda que outra coisa. O objetivo é insultar, intimidar, desacreditar qualquer ponto de vista oposto: quem não concorda com a maioria, é maluco, terraplanista, nega o holocausto, etc.

Esta é, portanto, ela própria uma posição anti-científica.

Na verdade, a maioria das discrepâncias não se prende com o conhecimento, mas sim com o uso que se faz dele. A ciência não pode dizer o que deve ser feito, porque é, supostamente, neutra no que a políticas e valores diz respeito. Fazer algo/tomar medidas não é ciência, é política.

E é no campo político que o termo se vai vulgarizando. Libertar presos, semáforos nas praias ou obrigatoriedade de máscara na via pública, subsidiar energias, taxar, proibir… é política, não é ciência. Na polarizada sociedade atual, de nós contra os outros, os seguidistas de uma facção logo disparam: anti-científico, ignorante, perigoso, disparatado, interesseiro… enfim, um negacionista, esse bandalho. Afinal, eles “seguem a ciência”, como se a ciência não servisse de desculpa para tudo ou o seu contrário, com muitos episódios negros ao longo da história.

Para quem as suas agendas são tão importantes que não se permitem a que os factos falem por si, troca-se a discussão de ideias para a discussão de pessoas: é criticar os dados da DGS que não é patriótico, criticar o Governo uma campanha contra o país, é quem se indignar com a vacinação que é eleitor do Chega, é o dedo em riste contra figuras como a Joana Amaral Dias ou a Raquel Varela ou o João Miguel Tavares, são as ofensas nas redes sociais, os pedidos em grupos para banir divergentes, médicos a quererem denunciar e censurar colegas, etc., indo ao extremo de imensa gente a desejar que se cale a comunicação social.

Sendo perante elevada incerteza que mais falta faz ouvir e discutir opiniões – certos ou errados, enriquecer o debate só pode ser positivo, nem que para cimentar a nossa posição -, é precisamente nestas alturas que política, ciência e sociedade mais se fecham em volta de um unanimismo irracional. É que a racionalidade cria-se com abertura e aproximação, não com barricadas à volta de algo tão bem distribuído como a razão que julgamos ter. E parafraseando F. Goya (Los Caprichos, 1799), o sono desta produz… Monstros.