Para compensar o facto de a Igreja Católica estar, no dizer de G.K. Chesterton, sempre à frente do seu tempo, eis um breve texto (desfasado no tempo face à chuva de textos que denunciaram a putrefação da posição do PCP face à inacreditável guerra encetada pela Rússia contra a Ucrânia), a fazer eco aos primeiros alertas históricos da Igreja Católica face ao comunismo marxista.

Essa putrefação (se a palavra do então mero Angelo Roncalli não for excessiva) não foi, nem deve ser de admirar. Ela segue o vade mecum simplista de uma leitura da história (pautada pelo materialismo, o cientismo e o utopismo) lavrada pelo péssimo economista, e pior filósofo ainda, que foi o filho lerdo da Aufklärung hegeliana: Marx. Esse catecismo que, coescrito por um Engels repleto de raciocínios sem fundamento, causou as mais sinistras calamidades humanas do século vinte até ao empoderamento, a seu tempo de mãos dadas com os regimes comunistas, dos espectros saídos do deserto.

Tais calamidades eram, e continuarão a ser, inevitáveis. Não devido a uma deriva inevitável da história, mas à dinâmica própria de um marxismo que (sob a face de uma visão omnicoerente e omnicompreensiva da história, sedutora de tantos que buscavam um sentido para o sentido) mais não se revelou do que uma atroz mó trituradora. Uma que esmagou, e ainda esmaga (com uma violência ímpar inseparável do misticismo mais mecanicista) todas as sociedades que a ela se entregaram.

Claro que, no Ocidente, para se deixar seduzir por tal realidade sofisticamente propalada, era preciso estabelecer indices librorum auctorumque proibitorium (Norbert Wiener, Karl Popper, Arthur Koestler, etc.). Mais: e fechar os olhos ao suceder de tragédias atrozes que, ao longo do século XX, iriam causar pouco menos do que duas centenas de milhões de mortos, desde a URSS à Coreia do Norte, passando pelo Camboja e a China. Nada disso era (diziam-se a si mesmos e a quem os queriam ouvir) o verdadeiro marxismo ou o verdadeiro comunismo, mas um suceder omnipresente e falacioso de deturpações dos mesmos.

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Nada, pois, de pedidos de desculpas, de lamentos, de propósitos de emenda. Apenas sacudires de ombros próprios de quem, se crendo do lado certo da história, se tornara incapaz de reconhecer que, negando-se os valores absolutos, a liberdade, a bondade, a generosidade e o amor, o caminho só poderia conduzir a todos os lados em que a história se acabaria por mostrar mais desumana. Aqueles locais, mais humanos do que cartografáveis, em que acabaram por vigorar o materialismo castrador, o estatismo consagrado num ditador, o militarismo demente, o secularismo delapidante, o ateísmo opiáceo e o coletivismo egoísta.

Sendo tão evidente isto que acabou de ser brevemente descrito, e mesmo sabendo que o comunismo acabaria por implodir (por, em última análise, ser intrinsecamente falso, malévolo e paradoxalmente desconfiado das pessoas comuns e do bom senso), diversos Papas foram emitindo palavras, mais ou menos firmes, de advertência e de censura acerca do mesmo.

Hoje já as esquecemos. Hoje, se calhar, poucos não se rirão delas, neste mundo ainda mais ferido e sedento de um sentido objetivo que ao mesmo tempo parece recusar. Eis a razão de (se podendo admitir as mesmas como penetrantes na sua análise, certas nos seus prognósticos e atuais para os coevos corações inquietos) serem brevemente trazidas até aqui.

É inegável que, de início e no período pós-Das Kapital, a Igreja Católica, não mais do que outras confissões cristãs, não soube qual a melhor linha a seguir no enfrentar o comunismo “justificado” pelo marxismo. Deveras, ela foi encontrando dificuldades em articular propostas para lidar com o mesmo e, ao mesmo tempo, combater as injustiças sociais e económicas e promover a dignidade humana integral.

Dito isto, em finais do ano de 1878, o Papa Leão XIII (na encíclica Quod apostolici muneris) afirma a complexidade do confronto de dois sistemas económicos dominantes. Se não esconde os problemas que também entrevia no capitalismo selvagem, salienta sobretudo que o comunismo tinha adquirido o poder de subverter totalmente a sociedade, a ponto de esta não mais poder ser reconhecida e se manter escorada na Essência original da realidade.

Na mesma linha, embora de modo mais detalhado, o mesmo Papa (na tão linear quão complexa encíclica Rerum novarum de 1891) volta à entesadura presente do supramencionado documento de 1878. Por um lado, reconhece que o capitalismo é uma das causas das desigualdades iníquas que iam infestando a sociedade. Por outro, deixa claro que o comunismo era oposto a toda a razão humana que (transformada pela comunhão com o Libertador) não rejeite ser, nem humana, nem razão.

Se assim era, o comunismo, de acordo com Leão nesta encíclica, não iria solucionar nada, antes piorar atrozmente a condição dos pobres. Apenas uma intervenção humanitária (de denúncia das injustiças e anúncio da dignidade integral de todas as classes sociais) poderia ser edificadora de uma sociedade humana humanizada, liberta e libertadora da maior escravidão que todos podem experimentar: a suscitada pelo que de menos humano existia neles mesmos.

Após o papado de Pio X, que, em traços gerais seguiu a linha apolítica de Leão XIII no fino fio do sacudir o Mundo e estabilizá-lo, seguiu-se Bento XV. Este, confrontado com a barbárie indescritível do marxismo-leninismo (entretanto chegado ao poder no que fora a Rússia e tendo-a colocado sob os archotes incendiários que conduziriam ao Estalinismo e a outros -ismos não menos brutais), dispôs-se a escrever, com confiança e convicção, uma encíclica especificamente dedicada ao comunismo. Uma que, por infelicidade, não pôde completar.

No ínterim, Bento XV entregou-se a uma proto-Ospolitik, visando proteger, ao máximo, os crentes católicos das perseguições bolcheviques, que não desejava que ganhassem a proporção do, então, vigente, genocídio arménio (o Arhet) e assírio (o Seyfo) às mãos otomanas e, depois, turcas. Genocídios anticristãos que, na verdade, apenas prolongavam os cometidos anos antes contra os búlgaros de Batak e, depois, da Trácia (o Razorenieto), bem como contra os gregos do Ponto (a Friki).

Pio XI, esse, teve que se enfrentar com o refulgir daquilo a que Michael Riccards denominou os «novos homens do mal»: Mussolini (escrevendo a, vigorosa e iracunda, encíclica Non Abbiamo Bisogno [1931]) e Hitler (redigindo a encíclica Mit Brennender Sorge [1937]). Mas não deixou de ter em mente, igual e preponderantemente, aqueles que (sedentos de sangue desde o início e numa inversão total da afinação do real) iam colocando a pessoa ao serviço da sociedade em vez de estruturarem esta para servir àquela: os comunistas marxistas.

Neste contexto, este Papa (em maio de 1931 e na encíclica Quadragesimo anno, celebrativa, justamente, do quadragésimo ano da Rerum Novarum) começou uma série de intervenções mais decisivas em especial os do regime Nazi e os do seu irmanado comunismo marxista. Não há, deveras, qualquer vestígio de reserva na sua afirmação de que o credo dogmático deste último, expresso «em guerras de classes e na abolição da propriedade privada […] mesmo pelos meios mais violentos, […] [apenas] levava a que, uma vez no poder, mostrem o quão monstruosos, cruéis e inumanos são».

Os problemas, para Pio XI, não eram as reformas económicas e sociais, mas o que nestas poderia haver de falta de crença no humano e, assim, de contradição insanável com os valores humanos e cristãos que apelavam à colaboração entre as classes sociais. Eis uma descrença e um marasmo que (com a complacência do marasmo inerte dos regimes liberais europeus), estavam a levar à «destruição de sociedades inteiras pela violência e o derramamento de sangue».

É na senda disto que (no ano de 1937 e já com a encíclica Divini Redemptoris) este Papa volta a colocar, com a ajustada compostura cristã, o dedo na ferida, evocando o que de mais grave estava a tumorizar a humanidade e a reprimir a sua dignidade. Concretamente: o comunismo marxista que (propagando fortemente na época a pobre convicção de Lenine de que «não pode haver nada de mais abominável do que a religião») estava a espalhar o terror generalizado, a destruição da família e da sociedade, e, enfim, o ódio contra o Deus-Amor (desde a URSS ao México, passando por Espanha).

Pio XI sabia perfeitamente que o comunismo marxista seduzia imensos intelectuais (os «idiotas úteis», evocados e ridicularizados por Lenine), graças aos seus aparentes apelos à liberdade, igualdade e fraternidade. Todavia (como iria mais tarde reconhecer Jean-Paul Sartre, bem perto da sua morte), não sendo possível legislar esta última, as demais duas ficariam sempre, mas sempre, por realizar. Não estamos a ver isto, gritantemente, nos nossos dias, com todos os movimentos filo-marxistas, sejam estes “culturais”, “climáticos”, “raciais”, “terapêuticos”, “animais”, etc.?

Estamos a chegar ao último Papa que será evocado neste texto: Pio XII. Este vê lucidamente no comunismo marxista (e, depois, as suas derivações maoístas, e não só) mais do que um sistema num ciclo auto-repetitivo de ideias político-económicas, mas uma verdadeira (anti-)religião. Ou seja: algo em tudo análogo à religião, mas sem a capacidade de sanar e religar o que quer que seja, muito menos com a Origem da realidade, da verdade, da beleza e da alegria. É exatamente isto que mais o desassossegava: não só o ter deixado de se preocupar com estas realidades, mas o se ser impedido de se lembrar o motivo delas existirem.

Vendo os países do centro-leste europeus «sofrerem agressões injustas», Pio XII (na mesma radiomensagem natalícia do ano de 1948 de onde foram retiradas as suas palavras antes citadas) faz um apelo inaudito na altura (pelo menos a nível pontifício). A saber: que a comunidade internacional isolasse os perpetradores de tais violências (que apenas se viriam a agravar com o tempo). Aqueles que, a comando principalmente de Estaline, o (auto-)denominado “Tovarisch Homem de Aço”, perseguiam, sem pudor nem reservas, todas as formas de religião organizada naqueles países (muitos deles com uma significativa porção de Católicos).

Um ano depois (e face ao emergente poder político, no começo do “pós-II Guerra Mundial”, do Partido Comunista Italiano, entretanto entregue a uma tentativa de dissimulação da sua matriz marxista-leninista), a Santa Sé enceta uma estudo crítico filosófico-teológico do pensamento marxista. Um estudo que faria justamente parte daqueles a respeito dos quais Marx (num exemplo notável do que é a obstinação alienada de quem não tem força intelectual para se expressar de outra forma) dissera nunca «merecerem qualquer tipo de atenção».

Pois bem, tal estudo (pensado igualmente diante dos intuitos de destruição, não só da democracia, mas da própria Igreja) culmina num novo e influente ato de Pio XII. Em concreto: a aprovação de um sucinto decreto (sine nomine e contendo quatro dubia) que declarava a proibição dos católicos aderirem de coração ao comunismo. E isto, a ponto de que se o fizessem, deverem saber que se estavam a (auto-)colocar fora da comunhão com a Igreja. Aquela Igreja que (vendo-se a realidade dos nossos dias), se fosse a única janela envidraçada numa divisão que, de resto, estava totalmente fechada, veria muitos a recusarem olhar, por ela, para a maior Beleza, devido a alguma triste fuligem presente naquele vidro.

Não se sabe o alcance do antes mencionado documento, nem dos de natureza análoga que, sem tanta notoriedade, se lhe seguiram. Porém (lendo-se estudos académicos, vendo-se os resultados eleitorais em Itália e recordando-se, não a despropósito, os encantadores livros de Don Camillo de Giovannino Guareschi), a verdade é que muitos trabalhadores manuais, mesmo quando atreitos às seduções cativadoras do comunismo, recusaram votar no Partido comunista Italiano.

Os comunistas, em geral a nível mundial, nunca lhe perdoaram as suas ações, encetando uma série de campanhas de desinformação e obscurecimento, intencionadas a desfigurarem alguém corajoso, frontal, abnegado e empenhado. Alguém que, se se desse ouvidos a esses novos-Apates veiculadores de mentiras dentro de mitos, teria sido (afinal e tal como se pode ver na peça Der Stellvertreter de Rolf Hochhuth) um fingido cobiçoso ao serviço de Hitler.

Marx tornou-se uma apátrida e foi inumado virtualmente sozinho. Lenine enlouqueceu, foi mumificado e progressivamente plastificado. Estaline colapsou sobre a sua paranoia e, apesar de ter erguido as mãos para o alto como que num último desafio a Quem lhe dava a vida, foi desprezado mal que possível. Mao ficou comatoso e mais ficaria se visse o “Grande Salto Atrás” dado pela “sua” China em matéria económica comunista. Outros não tiveram fins tão memoráveis que possam ser aqui rapidamente evocados. Mas todos eles deixaram rastos de sangue que chegam até aos dias de hoje como expressões de uma das mais poderosas consequências finais da desumanização e despersonalização.

É possível que este escrito precisasse de algumas matizações. Mas o terem sido evitadas, sem se ter caricaturado a realidade, talvez lho permita ampliar a constatação dos perigos de algo que, em Portugal e entre quase todos os demais países europeus, parece, estranhamente, ainda poder ter futuro.

Se fui injusto, peço perdão. Peço perdão, quer para mim, por ser quem sou (também enquanto simples teólogo católico), quer para os meus irmãos comunistas, pelo que fizeram e ainda fazem. Contudo, jamais pedirei perdão por nunca vir a trocar as mãos de Jesus pelos punhos comunistas marxistas (ou outros comunismos piores). As mãos misericordiosamente abertas na Cruz (que mostram que “tu” e “sempre” são das mais capitais palavras declinadoras do amor) pelos punhos crispadamente fechados da brutalidade bélica característica de mentes superficiais (que catam, mais do que cantam, “amanhãs” pautados pelo “só eu” e o “já agora”).