Em 2018, o diplomata e académico singapurense Kishore Mahbubani instigou o Ocidente a refletir sobre a sua condição atual com a publicação de A Queda do Ocidente? Uma provocação. Neste pequeno ensaio, o autor recorda que a hegemonia do Ocidente é uma exceção na história da humanidade: “Entre o ano 1 e o ano de 1820, as duas maiores economias tinham sido sempre as da China e da Índia. Só a partir de então é que a Europa começou a tomar a dianteira, seguida pelos Estados Unidos.” Os ocidentais habituaram-se à ideia de hegemonia ocidental, mas trata-se de uma excecionalidade que conta agora o seu fim, como revelam os dados económicos da última década.

Mas não precisaríamos de recorrer às folhas de Excel dos economistas para reconhecer esse facto: um sentimento de decadência e pessimismo tem vindo a alastrar por todo o mundo ocidental, sintomatizado em fenómenos políticos que expressam o descontentamento crescente das populações. Um dado referido por Mahbubani e que é tópico de análise recorrente prende-se com a perceção de expectativas: apenas cerca de 30% dos Millennials dos países ocidentais acredita que a sua vida será melhor do que a dos seus pais, quer em termos financeiros, quer em termos emocionais; nos países emergentes esse valor sobe para cerca de 70%.

Mahbubani não negligencia os contributos do Ocidente para o Mundo: reconhece como herança ocidental os princípios da racionalidade e da ciência aplicados à melhoria das condições de vida e à gestão da coisa pública. Essa herança corresponde, no fundo, ao projeto que designamos como modernidade e nasce do questionamento do paradigma anterior fundado na autoridade da Igreja. As reivindicações de liberdade comercial e política e as revoluções científicas foram construídas sobre um descrédito crescente face à anterior forma de vida, conduzindo a um paradigma de otimismo, luzes e progresso que moldaria o pensamento ocidental dos dois últimos séculos. O questionamento das autoridades anteriores significou a adoção de novas autoridades e novos dogmas – a Razão, a Ciência, a Verdade-com-letra-maiúscula – e durante duzentos anos as sociedades europeias desenvolveram-se sob o signo da confiança de que havia um caminho claro e objetivamente melhor.

Numa perspetiva filosófica, os caminhos da desconfiança já estavam, no entanto, a ser traçados pelos mestres da suspeita, para usarmos o termo cunhado por Paul Ricoeur. Marx, Nietzsche e Freud, cada um à sua maneira, já minavam as bases da confiança nestes pilares modernos, introduzindo a hermenêutica da suspeita na nossa relação com o mundo. No contexto democrático do século XXI isso abriu a porta à liberdade de interpretação dos factos, da realidade, da própria política e a uma desconfiança conspirativa permanente face ao que nos é dito.

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Depois do otimismo das Luzes, da crença na Ciência, da vitória liberal nas guerras mundiais, da consolidação de um estado social ao longo do período keynesiano e das taxas de crescimento económico do período neoliberal, entramos num período de estagnação não só económica, mas também demográfica e cultural. O resultado só poderia ser o da crescente desconfiança das populações: quanto às grandes narrativas ideológicas, quanto às elites políticas, quanto às próprias instituições.

A confiança pública na Razão, na Ciência e na Verdade desfez-se e a consequência foi a multiplicação de fóruns que pretendem oferecer novas verdades a uma sociedade que perdeu as suas referências. Como tem vindo a ser notado, a novidade não reside nas fake news em si, que são certamente tão antigas quanto o próprio homem, mas no facto de elas serem tão facilmente acreditadas, como se resolvessem ansiedades fundamentais das atuais sociedades democráticas.

Vale a pena dedicarmo-nos ao esforço de encontrar culpados? São muitos os artigos que se têm concentrado em culpar Donald Trump e a multiplicação de movimentos de contrainformação, como o QAnon. Do mesmo modo, acusou-se os promotores do Brexit de terem construído uma campanha de desinformação. Mas importa não esquecer que a suspeita também se encontra em outros lugares: recordemos a tese de Noam Chomsky e Edward Herman quanto às estratégia de produção de consentimento no domínio dos media e a sua chamada de atenção para a necessidade de um pensamento crítico. Ou a defesa de uma desconfiança permanente perante objetos mal identificados como o patriarcado e o racismo estrutural. Mais do que isso: recordemos como a eleição de Donald Trump em 2016 foi descredibilizada. Ou como no domínio do #metoo se generalizou a convicção de que o julgamento teria de ser público e pelas massas, na medida em que o sistema judicial está corrompido. Ou a suspeita generalizada quanto à Polícia, que deve ser simplesmente eliminada.

Pode ser tentadora a ideia de encontrar culpados fáceis. Mas a realidade é sempre mais complexa (sobretudo com o atual contexto de tecnologia algorítmica) e não se resolve acusando de ignorância ou maldade os eleitores de Trump, os que votaram pela saída do Reino Unido da União Europeia ou os que encontram em André Ventura uma voz para o seu descontentamento. Também não se resolve com a derrota de Trump ou a vontade de Biden de sarar o seu país. Os tempos são de suspeita e ela não se encontra só à Direita – parecem antes sintoma de um momento histórico. Na verdade, se por decadência entendermos a desconfiança em relação ao nosso mundo e a suspeita generalizada face às suas instituições, então Mahbubani terá razão. Os tempos de suspeita são os tempos da queda do Ocidente.