1 Foi preciso esperar pela racionalidade. Demorou um bocadinho, tão borbulhantemente absurda era a festa das vitórias. Das supostas vitórias. Foi preciso deixar correr o pano sobre aquela embaraçante fantasia, esperar que passasse o efeito do equívoco e não fora a realidade fria dos números, e ainda teríamos escorregado na passarelle: uns festejando-se audivelmente como nos circos (ou deveria dizer como em Marte?); outras, anunciando vitórias sobre o próprio esqueleto da perda de votos, outros ainda garantindo saúde eleitoral onde ela acabava justamente de faltar. E mesmo o maestro titular Costa, triunfante com as suas distribuições, reposições e correcções de “injustiças” logradas pela sua generosa governação, terá ficado aquém do que no seu intimo suporia ser a felicidade do povo, traduzida em votos. (António Costa queria tanto a maioria absoluta et pour cause, que até me ocorreu que o fantasma de Salgado Zenha e o seu veemente grito de “PS SOZINHO” tivesse pairado sobre o desfecho eleitoral, só para negar ao actual chefe socialista a sua pretensão maioritária…) Voltando à gente de carne e osso e deixando os fantasmas (houve mais) de lado: qualquer leitura séria dos números eleitorais não só desautoriza como descredibiliza as exuberantes palavras e o ruidoso júbilo testemunhados domingo à noite. No fundo, menorizando descaradamente a plateia do país e tomando-a convenientemente por parva, assistiu-se a uma espécie “de fazer de conta” mas… para quê e enganar quem?

Dizer que foi uma das mais surreais performances politico-mediáticas a que me lembro de assistir (infelizmente nem sequer divertida) é dizer pouco.

2 Pareceu-me esbarrar por estes dias com a ideia — nalguns casos, com a certeza — de um PS fortíssimo, reforçado pela recente votação, senhor e dono, podendo pôr e dispor de tudo. À superfície, sim, claro, foi ele o “vencedor destacado”, como no ciclismo. No fundo, já é menos certo: 2019 em nada se assemelha a 2015 onde era preciso apear Passos Coelho, esconjurar de vez o seu fantasma (eu não dizia?) e ser convictamente mãos largas, gozando as delícias de um excelente ciclo económico (onde se mimavam os funcionários públicos, filhos da governação, deixando de fora todos os outros, destratados como enteados). Hoje tudo mudou, mesmo que (ainda) não pareça: as condições são piores (basta ouvir o anúncio de mau tempo, feito ontem pela nova líder do FMI); a fragmentação é maior; lá fora os ventos políticos sopram rajadas que podem chegar até aqui. Além, claro, de que os futuros parceiros do chefe do governo, assentes no que chamam sem conhecimento de causa “as nossas boas condições económicas”, serão muito mais exigentes — tratem-se ou não dos mesmos parceiros. E far-se-ão mais caros, e alguns hesitarão mesmo entre abrir a mão ou fechar a porta ao PS. Sim, não é nada a mesma coisa. E mais: agora que o maestro pode escolher e tem por onde escolher, tudo lhe competirá exclusivamente a ele, e só a ele: desde o ser capaz da “boa” escolha ao assumir a responsabilidade de que ela se cumpra. Sucede que sempre vimos António Costa exibir com notável à vontade a segurança que lhe advinha da facilidade: distribuía, dava, revertia, gastava, cativava, disfarçava. Uma segurança muito cómoda ontem, irrepetível porém amanhã.

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