Domingo de manhã, por volta das oito e pouco, e no comboio da linha de Cascais uma senhora atrás de mim fala ao telefone. O diálogo que leva ganha a certa altura um tom exasperado. “Quantas vezes já tivemos esta conversa…”, desabafa num gemido abafado e não consigo não querer prestar atenção. Entra um período silencioso e calculo que, do outro lado da chamada, a pessoa insista no assunto. Agora a resposta já não mostra a mesma vulnerabilidade e a minha vizinha de viagem assume que prefere saltar para outro tema.

O telefonema prossegue e avança para uma parte aparentemente mais funcional. Parece que o drama que tinha despertado a minha curiosidade desapareceu. A voz da minha vizinha de viagem mostra uma competência resoluta de quem vai terminar a chamada mais minuto, menos minuto. No entanto, do outro lado, alguma insistência deve ter sido feita no assunto, porque ela volta a desabafar, ainda que mais controladamente, que “não vale mesmo a pena continuar esta conversa”. Este diálogo dura de Oeiras até Santos, onde saio. Fui tomando apontamentos no bloco de notas do telemóvel porque poucas coisas me inspiram tanto como pedaços soltos de conversas alheias. Parte da literatura é alcovitice glorificada.

Claro que me sinto a devassar a vida dos outros mas o material é irrecusável. Quando tudo naquele telefonema parecia dirigir-se para terminar com “beijinhos” e um suspiro de resignação da minha vizinha de viagem, concluo que ali não fui apenas um espectador de um drama ribeirinho matinal alheio. Eu também participo boa parte das vezes em diálogos semelhantes, mesmo que mais escondidos e não em transportes públicos. Conversas em que duas pessoas discordam acerca da importância e até gravidade do assunto que tratam são, afinal, muitas. No diálogo é exigente o produto e o processo.

Não sei se esta divisão é demasiado artificial mas talvez se possam dividir as conversas em dois géneros: o primeiro, em que os dialogantes estão razoavelmente afinados, atribuindo um grau semelhante de importância ao diálogo que têm; e o segundo, em que somente dialogarem sobre aquele assunto particular já os desafina. É no segundo tipo de conversas em que maior custo é exigido, porque tão somente aceitar o assunto já envolve um diálogo árduo. Conversas em que a importância do diálogo não é consensual são conversas duplas: dialoga-se para se tentar dialogar.

E as pessoas também se afastam assim. Quanto menos se concordou em considerar o assunto ao ponto de o manter conversado, mais longe ficaram os dialogantes. Uma boa parte das grandes separações são crónicas de um assunto que se foi perdendo do diálogo. As pessoas que perdemos foram antes conversas que se perderam também. Da mesma maneira, a intimidade faz-nos correr numa maratona verbal constante. O segredo das pessoas que se amam é dialogarem uma vida inteira. Metade de um casamento, por exemplo, é garganta.

A minha desesperançada vizinha de viagem já não encontrava futuro na conversa de que se esquivava. Talvez tivesse óptimas razões que desconheço, até porque também existem formas mórbidas de não abandonar conversas. Uma conversa não é boa só por ser conversa: há aquelas em que se mete um fim e é uma bênção. Mas encontrar futuro em conversas enquanto princípio geral, e mesmo nas mais difíceis, é um modo de não desistir dele. Quem sabe, se eu tivesse interrompido a conversa para lhe dizer isso, “não desista”, não teria sido ainda melhor do que transformá-la em crónica dominical?

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