Estamos em plena preparação da estratégia portuguesa no quadro da PAC e numa conjuntura em que as grandes transições – climática, energética, ecológica, digital, laboral – impõem novas regras de ordenamento e conduta aos nossos modelos de desenvolvimento económico, social e territorial. Seguem-se algumas breves reflexões.

O contexto atual

Com o tempo, é forçoso constatar que as medidas de política agrícola e rural foram, em boa medida, capturadas por uma lógica dicotómica perigosa. De um lado, uma estrutura de lobbying montada em redor de três confederações que visa maximizar o volume de ajudas do 1º e 2º pilares da PAC em benefício dos seus associados e de si próprias, por outro, uma estrutura burocrático-administrativa que perdeu, na prática, as suas funções nobres de planeamento, programação e extensão para se reduzir às funções burocrático-administrativas de avaliação, controlo, auditoria e inspeção.

Nós não podemos continuar a viver esta lógica dicotómica, este dilema do prisioneiro, face aos grandes desafios que já aí estão. Com efeito, face a tantos pagamentos diretos,  ecoregimes, condicionalidades de natureza diversa, incentivos financeiros ao investimento, efeitos externos positivos e negativos, não nos podemos reduzir a uma lógica simplista de provedo-utilizador sob o olhar atento do mestre algoritmo europeu, esquecendo, na prática, as economias de rede e aglomeração que tão grande volume de meios pode efetivamente proporcionar.

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Uma transição de valores, o regresso dos bens públicos e comuns

A conjuntura que vivemos é um momento de verdadeira transição paradigmática que nos confronta com o ordenamento dos nossos próprios valores, aqui traduzidos pelo imperativo dos bens públicos globais, por um lado, e pelo regresso aos bens comuns locais e comunitários, por outro. No caso da estratégia portuguesa em matéria de PAC, esta transição de valores significa que a diversidade e multifuncionalidade das medidas do 1º e 2º pilares devem ser observadas à luz de objetivos de convergência e coesão económica, social e territorial e de um networking apropriado em matéria de gestão.

Neste contexto de mudança paradigmática, a justiça dos bens públicos e dos bens comuns obriga-nos a procurar o equilíbrio necessário entre o retorno lento de uma ação coletiva de natureza climática e ecológica e o retorno rápido de uma ajuda direta produtiva, sobretudo se esse pagamento direto representar, em si mesmo, uma distribuição assimétrica e pouco equitativa entre grandes e médias explorações, de um lado, e micro e pequenas explorações, de outro. Dito de outro modo, este é, também, o tempo do regresso aos bens públicos e bens comuns essenciais onde se contam: a renovação geracional e demográfica, a revitalização das vilas e aldeias, a construção de uma nova matriz energética, a defesa da biodiversidade e a regeneração dos recursos naturais, o ordenamento do território e dos seus principais ecossistemas e geossistemas, o combate contra as alterações climáticas e a salvaguarda dos serviços de ecossistema fundamentais à vida.

As quatro agriculturas, o reequilíbrio necessário

Sigo de perto a tipologia das quatro agriculturas sugeridas pelo meu colega Francisco Cordovil: a agricultura agronegócio, muito capitalizada, a grande agricultura de base fundiária, muito rentista, a pequena e média agricultura familiar muito inserida nos mercados, a pequena e a micro agricultura familiar, dos circuitos curtos e dos mercados de proximidade. Nesta década, estas quatro agriculturas vão estar sujeitas, simultaneamente, a uma grande pressão dos mercados e das políticas públicas, devido, justamente, à mudança paradigmática que se avizinha, em especial: a pressão da concorrência sobre os recursos naturais pode colidir com os ecoregimes em vigor, uma maior sofisticação dos ecoregimes é quase inevitável e pode gerar um efeito de dissimulação, uma maior sofisticação energética e digital é praticamente certa, uma maior exigência em capital humano e gestão do conhecimento é indispensável, uma maior exigência em capital financeiro é inevitável, uma maior exigência em capital institucional é fundamental.

Dito isto, existe o risco real de se aprofundar uma clivagem estrutural entre as grandes e médias explorações, de um lado, e as pequenas e muito pequenas explorações, de outro, mesmo que os apoios diretos ao produtor cumpram razoavelmente a sua missão dentro da convencional lógica dicotómica: de um lado, a capitalização do investimento das grandes e médias explorações canalizada, cada vez mais, por fundos de investimento nacionais e estrangeiros, de outro, uma enorme variedade de ações de base territorial, por vezes de duvidosa eficácia e efetividade e baixo valor acrescentado rural e territorial.

A articulação entre os dois modelos, uma gestão mais inovadora

Uma forma de sair desta inevitabilidade do modelo dicotómico – o modelo setorial capitalizado das grandes e médias explorações e o modelo familiar de base territorial das pequenas e muito pequenas explorações – é inovar ao nível do networking do modelo de gestão, nos seguintes termos:

  • Criar uma estrutura de missão ao nível regional que junte as CCDR, as DRA e o ICNF em estreita associação com as instituições de ensino superior e as organizações de agricultores,
  • Desenhar um programa integrado de desenvolvimento rural e coesão territorial ao nível de cada CIM tendo em vista dar coerência e coesão territorial a todas as medidas de política inscritas nos programas operacionais regionais,
  • Criar uma curadoria territorial, uma plataforma colaborativa de extensão rural, de geometria variável, tendo em vista cuidar e impedir todas as formas de exclusão que as próprias medidas de política sempre implicam, em especial, junto da pequena e muito pequena exploração,
  • Criar uma estrutura de concertação regional onde as quatro agriculturas estejam representadas para efeitos de articulação e networking dos vários modelos de agricultura.

Na base deste modelo de gestão está um mapeamento das fileiras e cadeias de valor agroalimentares e agroindustriais e uma abordagem colaborativa de todas as ligações produtivas que se afigurarem úteis e necessárias entre os quatro modelos de agricultura, para além da aprendizagem técnica e agroecológica que se pode realizar, por exemplo, através da implementação dos diversos ecoregimes aplicáveis.

Notas Finais

Uma estratégia colaborativa e o networking entre modelos de agricultura é um bem comum inestimável e é isso que aqui se sugere. Trata-se de um verdadeiro imperativo categórico e serve para medir o grau de responsabilidade de cada parceiro envolvido ou não envolvido. É neste contexto mais amplo, do networking e do valor acrescentado de cada pagamento direto da PAC, no âmbito de um programa integrado de desenvolvimento rural e coesão territorial, que devem ser lidas e interpretadas as ajudas diretas e indiretas dos 1º e 2º pilares da PAC.

Para cumprir este desiderato resta dizer quão importante é a revitalização dos serviços regionais envolvidos e em especial a CCDR, a DRA e o ICNF, em particular, o regresso às funções nobre de planeamento, programação e extensão rural e em detrimento de outras funções que uma autoridade de gestão específica poderia realizar.

Uma última nota sobre uma eventual dissimulação de algumas medidas, em especial os diversos ecoregimes e outras tantas condicionalidades verdes, cuja sofisticação técnica e burocracia administrativa podem introduzir discriminações graves no acesso e no benefício, entre a grande e a média exploração, de um lado, e a pequena e muito pequena exploração, de outro. É apenas mais um aviso à navegação. Ficam as sugestões.