Acredito que esta afirmação possa parecer, no mínimo, paradoxal. E se as grandes transições em curso – climática e energética, ecológica e alimentar, tecnológica e digital, demográfica e migratória, económica e social, geopolítica e securitária – forem o prenúncio de uma mudança paradigmática de longo alcance no padrão habitual de vantagens e desvantagens comparativas, sobretudo, num país tão pequeno como o nosso. Vejamos, mais de perto, este aparente paradoxo, talvez, mesmo, o sinal de uma revolução silenciosa já em curso.

Em primeiro lugar, num país com pouco mais de 200km de largura a diferença do interior deve ser vista e procurada como uma vantagem comparativa, um imenso hinterland com estreitas ligações a redes urbanas e a uma ou mais áreas metropolitanas. As boas vias de comunicação e as rápidas conexões digitais acabarão, muito em breve, com as anteriores dicotomias paralisantes cidade-campo. É preciso, porém, mapear as vantagens do interior e suscitar para elas novos atores, protagonistas e ideias de projeto. Se estivermos à altura deste grande desafio, o chamado Interior passará a ser, dentro de alguns anos, o nosso colar de pérolas mais precioso.

Em segundo lugar, o universo material e simbólico de uma região contém muitos sinais distintivos territoriais, muitos deles subestimados, ocultos ou ignorados. É a perceção de uma certa iconografia regional que irá revolucionar o conceito de espírito e arte dos lugares, se quisermos, dos novos terroirs do interior. Precisamos, pois, de investir mais na delimitação e identificação desses sinais distintivos e de conceber, a partir deles, mais uma grelha de leitura do território que alimente a diversidade e pluralidade do nosso interior policromático. Espero bem que as universidades e politécnicos cumpram essa missão fundamental.

Em terceiro lugar, não será muito difícil construir uma nova narrativa comunicacional a partir dos referenciais simbólicos presentes no mundo rural, pois eles são abundantes. Eis apenas alguns exemplos retirados desse universo referencial e que, no seu conjunto, compõem o ambiente inspirador dos terroirs do nosso interior: o vagar e a arte da existência (o lema de Évora, capital europeia da cultura em 2027), o silêncio do horizonte longínquo, a espiritualidade e o génio dos lugares, a inspiração transbordante da natureza, o sentido religioso do recolhimento, a beleza de um quadro pictórico, o encantamento de uma paisagem literária, os mistérios da vida natural, enfim, a nostalgia da vida simples.  Os territórios inteligentes e criativos do futuro terão aqui matéria-prima suficiente para trabalhar e produzir novos conteúdos criativos e culturais.

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Em quarto lugar, os sinais distintivos territoriais e a sua especial iconografia abrem-nos a porta para diferentes cenografias do território. As start-up da economia digital, sobretudo as empresas do marketing digital e da publicidade, aproveitarão a oportunidade e tomarão o mundo rural como um décor para as suas próximas incursões e representações. O naturalismo romântico do nosso rural profundo será um trunfo e um ativo preciosos. Não será apenas a agricultura de precisão com os seus agribots, será, também, uma agrocultura que chegará com os rurais neo-românticos. A policromia do mundo rural e o campo tornar-se-ão uma espécie de cenário natural para as produções low cost das indústrias criativas e culturais.

Em quinto lugar, com um novo décor, novos atores e protagonistas teremos, seguramente, uma outra coreografia também. Ao lado das metamorfoses do capitalismo agroecológico, teremos, cada vez mais, uma economia colaborativa que tornará o capitalismo mais popular e genuíno, no sentido próprio dos termos. Formar-se-ão territórios-rede e atores-rede onde o capital natural e o capital social serão tão ou mais decisivos que o capital financeiro. A coreografia política e social será mais complexa e muito diferente da atual, pois a economia inter pares, peer to peer, com mais inteligência coletiva e solidariedade social tomará, de forma gradual, o lugar da economia mais extrativa e predadora.

Em sexto lugar, e esta será uma das principais tarefas do próximo futuro, a criação de uma inteligência coletiva territorial com o suporte de uma plataforma analítica territorial capaz de enquadrar o rural profundo. Não tenho dúvidas, haverá mais campo na cidade e mais cidade no campo. Desde a agricultura vertical na cidade, à agricultura acompanhada pela comunidade, às novas agriculturas periurbanas, à agricultura de precisão e às agriculturas de nicho, será cada vez mais um continuum agroecológico ao longo de 200 km de largura. Nessa infraestruturação agroecológica de corredores verdes e mosaicos paisagísticos, os novos terroirs serão a cereja em cima do bolo e uma verdadeira atração para os neo-rurais que chegarão curiosos para ocupar o interior do país, que se tornará a prazo, quem diria, um interior verdadeiramente cosmopolita.

Em sétimo lugar, os novos terroirs, pela sua própria natureza, são uma construção longa e delicada, uma verdadeira filigrana sociocultural, cuja permanência depende muito do capital simbólico e reputacional que for possível reunir à sua volta. Para manter essa reputação já não é suficiente o valor que lhe é transmitido pela imagem de marca do produto original, quantas vezes capturada por uma turistificação precipitada do território. Para manter o bom senso e o bom gosto em redor do terroir e reinventar o universo simbólico dos seus sinais distintivos, a região estará obrigada a escolher os seus embaixadores mais representativos e reputados, os seus rostos de maior distinção.

Em oitavo lugar, este novo mosaico agropaisagístico feito de agricultura, agrocultura e bosquetes multifuncionais precisará de ser animado por um pivot que nós designamos de ator-rede. O ator-rede é, digamos, o mestre de cerimónias dos novos terroirs, mas que funciona segundo uma lógica de curadoria do território. Entre as suas tarefas contam-se a escolha dos SDT, a sua narrativa iconográfica e os cenários da sua representação (que melhor polinizam o território), o mapeamento dos nichos ecológicos e seus habitats, o mapa gravitacional dos atores locais e regionais e o seu grau de conectividade.

Em nono lugar, os territórios mais remotos e hostis serão um desafio à imaginação tecnológica e digital e aguardamos, a todo o tempo, que as universidades, os centros de investigação e as start-up mais ousadas sejam capazes de nos trazer novidades na forma de ocupar estes territórios. Progressivamente, os terroirs desta nova ruralidade, de uma 2ª ruralidade, deixarão de ser apenas espaços-produção para serem, cada vez mais, espaços-produzidos, se quisermos, territórios de consumo, destino e visitação. O marketing digital irá forjar uma imagem de marca cheia de glamour (e pastiche), os novos embaixadores farão a boa publicidade do place branding e a chegada de muitos neo-rurais talentosos revolucionará os tradicionais terroirs da produção.

Por último, um aviso à navegação. À nova economia digital, para fazer prova de vida, não bastam as comunidades online criadas de geração espontânea em espaços de coworking ou fablab municipais ou cooperativos. Também não bastam as start-up geradas em incubadoras e aceleradoras, que aí vegetam muitas vezes sem um mínimo de sustentabilidade. Há, de facto, um longo caminho a percorrer entre o conforto de uma rede digital gerida por uma comunidade online e o desconforto de um problema real gerido por uma comunidade real, municipal ou associativa.

Nota Final

Pensemos, por um momento, nos agroecossistemas da Terra Fria e da Terra Quente transmontanas, nos parques naturais e geoparques, no Alto Douro vinhateiro, no Minho Verde, no Baixo Tâmega e Sousa, no Dão-Bairrada, nas Terras do Planalto Mirandês, no ecossistema da Serra da Estrela, na Cova da Beira e na campina de Idanha, na Lezíria e Charneca ribatejanas, no ecossistema das rias, nos montados alentejanos, na Costa Vicentina e no Barrocal Serra algarvios, para citar apenas alguns. Pensemos, por um momento, nos inúmeros empreendimentos de agroturismo, turismo rural e turismo de natureza distribuídos por todo o país, alguns deles verdadeiramente inspiradores e que nos indicam, desde já, o caminho para os futuros terroirs policromáticos da 2ª ruralidade. Quero crer que os neo-rurais de todas as extrações e proveniências já preparam essa grande jornada que nos conduzirá, gradualmente, dos terroirs de simples produção aos terroirs de produção, recreio, lazer e visitação, uma mistura virtuosa de várias hiperligações entre economia produtiva e economia criativa, digamos, uma espécie de novos lugares centrais dos mosaicos agropaisagísticos do Grande Interior português.

É verdade, tudo isto parece um discurso paradoxal e utópico no preciso momento em que a luta está nas ruas com a greve dos agricultores nacionais e europeus. Mas essa é, também, a razão e o pretexto para contrariar o discurso pessimista e conservador e afirmar a vitalidade da agricultura portuguesa no futuro próximo, tirando partido e vantagem dos nossos inúmeros microclimas e ambientes agroecológicos e apostando sem hesitações no rejuvenescimento e na sucessão empresariais, na promoção agroecológica dos sistemas produtivos locais e com total respeito pelos mosaicos agropaisagísticos mais representativos da cultura ecológica regional.