Lamento voltar a polemicar com a nova comentadora do «Público», Carmo Afonso. Acontece que ela proclama no seu último artigo, porventura sem se dar conta do que escreveu, uma conclusão «pacifista» para a guerra desencadeada pela Rússia contra Ucrânia. Ora, a verdade é que essa guerra já causou milhares de mortos; mais de milhão e meio de fugitivos ucranianos; o bombardeamento e a ocupação de várias cidades ucranianas; e a impávida continuação da guerra desde o dia 24 do mês passado.

Talvez se possa falar de «pacifismo» perante um conflito verbal entre duas entidades. Quando, porém, uma dessas entidades – no caso, a Rússia de um tal Putin – ataca a outra sem aviso nem sequer uma lista de condições que permitissem a paz imediata, deixa de haver qualquer espaço físico e mental para um pretenso «pacifismo»! Conclusão: «Matem-se uns aos outros… pacificamente»! Ora, as únicas declarações feitas por Putin à Ucrânia, sem negociação de espécie alguma com os governantes eleitos do país atacado, foram e continuam a ser a rendição sem condições da Ucrânia e a ameaça de um bombardeamento nuclear executado uma única vez em 1945 em condições bem diferentes e então com efeitos muito menores do que teria hoje!

Patética é também a tentativa da autora para nos convencer que a guerra em curso não foi, afinal, desencadeada sem aviso pela Rússia contra a Ucrânia mas sim que «os pobres nesta guerra são as forças militares e os civis ucranianos e são também os militares e o povo russo». E acrescenta sem surpresa que «os interesses que fazem esta guerra não são os dessas pessoas». Por fim, tenta encher-nos os olhos com poeira sugerindo que «pode ser um duelo da NATO com a Rússia [por] interesses militares e económicos». Pode ser mas não está provado. Por tabela ou não, o duelo da Ucrânia é com a Rússia, a qual se limitou a sofrer sanções económicas da UE e da NATO enquanto a oposição russa se manifesta contra a guerra e é metida na cadeia!

Como se pretendesse confundir os leitores, a autora tenta multiplicar as causas e consequências do ataque do Estado russo contra o Estado ucraniano cruzando-as com um ataque paralelo das elites sócio-económicas de ambos os países contra ambos os povos sob a sua dominação… Só falta sugerir que as elites estão unidas enquanto os povos se matam uns aos outros: é uma lenda que exclui, entre outras coisas, o chamado patriotismo das classes desprovidas de qualquer outro valor ao qual se agarrar!

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Esquematicamente, para a autora, a agressão da Rússia contra a Ucrânia parece não ser mais do que um novo episódio da luta eterna dos ricos contra os pobres, vulgo «luta de classes»… E é com esta saída pouco airosa, proveniente dos manuais mais gastos dos proclamados protectores dos pobres, que a comentadora procura – sem muito êxito, diga-se – explicar a brutal agressão da Rússia contra a Ucrânia nos termos de «esquerda versus direita» presentemente em vigor no extremo oposto do mapa europeu. Refiro-me a Portugal, onde a maioria dos comentadores mediáticos pretendem, como é sabido, distribuir todas as misérias do nosso dia-a-dia entre a «esquerda» (boa) e a «direita» (má), ou vice-versa…

Que bom – e que transparente – se assim fosse… Obcecada como está com uma NATO que nunca foi tão pouco activa como actualmente, pois as populações e a maioria dos governos não quer ouvir falar de guerras, Estados Unidos incluídos, se não veja-se o que se passou há pouco no Afeganistão, a comentadora parece considerar que a oposição à NATO é ou devia ser uma das principais características daquilo a que ela chama pomposamente «a esquerda». Se descesse à terra, ela saberia que a NATO foi criada há mais de 70 anos (1949) e Portugal fez parte dos primeiros membros ao contrário da Espanha saída da guerra civil. A NATO e a própria CIA tiveram aliás uma posição mais favorável ao 25 de Abril do que a «esquerda» poderia imaginar…

Quanto aos últimos parágrafos do artigo do «Público», continuam sem convencer o leitor. Nem a respeito de um pretenso «conteúdo ideológico nesta guerra […] que deve ser resgatado» para lá da própria NATO enquanto alegada responsável pela reacção da Rússia contra a Ucrânia; nem tão pouco deixa de «continuar a discutir se existe um lado natural para a Esquerda e se esse lado seria Putin».

A concluir, a autora proclama enfaticamente que «o lado natural da esquerda é simplesmente o dos explorados», como se isso tivesse alguma coisa que ver com o que se está a passar. A ideologia esquerdista e os velhos mitos soviéticos não fazem, portanto, mais do que diluir a dura realidade do que se está a passar na Ucrânia e daquilo não deixará de vir a acontecer nos próximos tempos.