Ao cabo de pouco mais de sete meses, a guerra movida pela Rússia contra a Ucrânia pode ainda durar muito tempo. Depois de um período em que a Rússia pareceu consolidar a ocupação de boa parte da frente leste ucraniana até ao sul ameaçando Odessa, o recente contra-ataque da Ucrânia não só permitiu recuperar parte dos territórios de Leste como abalou decididamente a invasão russa.

Foi isso que obrigou Vladimir Putin a fazer um discurso inédito, admitindo o recuo militar e anunciando a mobilização maciça de 300 mil homens da reserva militar. No início da invasão, chegou a haver na Rússia manifestações de protesto que deram então lugar a mais de mil prisões ao mesmo tempo que se iniciou um movimento de fuga da população para o estrangeiro. Foram estas as poucas formas de resistência que ninguém podia fazer pela Rússia!

Por último, as movimentações do exército ucraniano desencadearam da parte de Putin uma nova alusão ameaçadora ao recurso a ataques nucleares, como já havia feito e repetido desde a declaração de guerra à Ucrânia. A concluir o seu discurso, Putin recorreu a um patético apelo contra os países que se uniram para derrotar a «Grande Rússia», privando-a do seu «grandioso passado histórico»! Se isto pode fazer sorrir, é essa concepção do mundo que espalha o terror nuclear externo, mas também interno, se Putin der tal passo.

Se é certo que a presidência de Zelensky mobilizou a população ucraniana, a qual tem resistido heroicamente à destruição do país e à morte de crianças e idosos estranhos à guerra, só um movimento equivalente poderá levantar a população russa contra Putin e o seu regime. Como já fiz notar, apoiando-me em observadores de origem russa fugidos à velha URSS, tal levantamento tem faltado até agora. Em contrapartida, o prolongamento da guerra, a mobilização de centenas de milhar de pais de família na reserva militar e, por último, a ameaça nuclear anunciada repetidamente poderão levar uma parte significativa da sociedade russa a levantar-se contra o regime em que vive. Com excepção da Bielorússia, todos os aliados de Putin já se afastaram dele, desde a China e a Coreia do Norte à Índia e à Turquia…

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Pelo seu lado, os Estados Unidos e a maioria da NATO rejeitam a possibilidade de recorrer à guerra nuclear e têm agido como se a Rússia nunca o venha a fazer. Com a massacrante insistência de Putin, contudo, países como os Estados Unidos e a Inglaterra não podem excluir que Putin passe da ameaça à prática. Já a França é titubeante, pois a «esquerda» odeia mais a NATO do que a Rússia e não me admirava se muitos europeus votassem a favor da Rússia em caso de conflito nuclear…

Resta saber como agirão os cidadãos russos. É certo que não podemos antecipar o que Putin fará com a bomba nuclear mas quem ameaça é ele. Aquilo que Putin já fez desde Fevereiro, mais o anúncio dos 300 mil novos «reservistas», deveria ser suficiente para a população russa se manifestar contra a ditadura e impor um regime minimamente liberal. O que está em jogo não é a NATO nem a Ucrânia. Foi a sociedade russa que pactuou com os sucessivos regimes desde o «fim do comunismo».

As primeiras reacções ao desaustinado discurso de Putin parecem ter mexido com a passividade manifestada até aqui pela sociedade russa perante a invasão da Ucrânia e a incoerência da governação. Assim seja! Histórica e socialmente falando, o destino desta guerra ficará a dever-se ao comportamento da sociedade russa perante a continuação do conflito. A simples ideia de utilizar armamento nuclear, como Putin repete constantemente, é suficiente para afastar do poder tal indivíduo. Quando Biden deixou escapar publicamente a ideia de que Putin devia desaparecer da cena, toda a diplomacia ocidental tremelicou, mas o mais provável é que o presidente norte-anericano tenha razão.

Enquanto Putin e os seus «siloviki» – os «durões» originários do KGB – se mantiverem no poder, uma de duas: ou a NATO consente que a Rússia recorra ao nuclear e arrase o que resta da Ucrânia, como tem ameaçado e, embora não seja provável que a NATO o permita; ou a mesma NATO responde ao ataque. Neste caso, será inevitável uma resposta militar dos Estados Unidos e da Inglaterra ao crime de Putin. E daí ao resto do mundo…

Em suma, é à sociedade russa que cabe resistir o mais rápida e eficazmente possível ao regime de Putin para não se chegar lá. A verdade, porém, é que esse levantamento ainda não teve lugar. Não é à União Europeia que cabe agir e daí que o recente discurso da actual presidente do Conselho tenha ultrapassado as suas competências. Com efeito, se alguém franqueou a porta à Rússia foi à ambiciosa primeira-ministra da Alemanha de quem mais ninguém quis ouvir falar…