Sei bem que é sempre muito bonito lembrar o grande problema que é a baixa taxa de natalidade portuguesa, e dar uma meia dúzia de soluções. À esquerda a maior parte da solução parece ser colmatar o encolhimento da população com imigração. À direita propõem-se medidas fiscais mais benevolentes, com a sempiterna possibilidade (que nenhuma mulher quer nem, com o nível de ordenados que temos por cá) de trabalhar a meio tempo e a educação de infância universal e gratuita. Mais pó menos pó, é isto.

Claro que nenhuma destas medidas é má e inútil. Todas serão necessárias para resolver o problema da população a encolher, com o menor dinamismo (cultural e económico) e as dificuldades para pagar as pensões que resultam. Porém é sempre bom conhecer as causas dos problemas para os resolver. Sei bem que isto custa aos políticos, reconhecerem que a realidade existe por si só à solta, teimando em não caber nas, nem ser explicado pelas, teorias e ideologias políticas que se preferem. Neste caso – que envolve escolhas de mulheres terem ou não filhos – custa ainda mais aos políticos – maioritariamente masculinos – aceitar que se está a lidar com a realidade do ‘outro’ (feminino, no caso, como disse) e que se deve sobretudo ouvir o outro (bom, a ‘outra’) para perceber o que se passa, em vez de adotarem a atitude normal masculina de explicarem às mulheres qual o problema existente e como se resolve.

E a verdade é que, havendo necessidade de políticas públicas, claro, a decisão de ter filhos provavelmente passa por fatores de organização social e familiar que pouco têm a ver com deduções fiscais, ou outras. Donde, alterações no bom sentido que se façam podem bem resultar inúteis.

Um fator importante para a decisão de ter filhos – logo, para crescer ou diminuir a taxa de natalidade – é a partilha das tarefas domésticas nos casais. Mais concretamente, é um fator muito importante para a decisão de ter ou não um segundo filho.

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É fácil perceber a lógica. Uma mulher, com carreira profissional, vive em união de facto com um homem que é um imprestável que descarrega em cima dela a sua parte das tarefas domésticas. A mulher decide mesmo assim ter um filho, porque quer ser mãe e viver a experiência da maternidade. Depois do nascimento do filho, o imprestável do pai e do marido continua a não participar, não dá banhos, não muda fraldas, não dá as papas e as sopas. Evidentemente esta mulher não vai ter um segundo filho. Podem oferecer creche gratuita ou impostos pela metade – que o que ela vai querer é ajuda doméstica e no cuidado dos filhos, tempo para descansar e para si própria (tal como o companheiro/marido tem quando está no sofá a ver futebol). Reduzir horário de trabalho e ficar financeiramente mais dependente também não é opção – afinal um fator de felicidade para os casamentos modernos é exatamente a partilha das atividades domésticas.

As histórias pessoais são usualmente, nestes assuntos, bons indicadores. Ontem, quando falava a uma amiga que ia escrever sobre este tema, foi-me dito que só tinha tido um filho porque o marido nunca participou em absolutamente nada. Quando adoecia era ela que faltava. Levar e buscar à escola – ela.

Mas não necessitamos de ficar pelas histórias pessoais. Há pesquisa sobre o assunto. Em casais em que ambos têm trabalho pago, a participação tendencialmente igualitária dos homens nas tarefas de casa ou, pelo menos, nas tarefas de cuidado aos filhos, é um fator que propicia a decisão de ter um segundo filho. Deixo alguns exemplos de papers com resultados para Itália. Para a Suécia. Para a Noruega. Para o Japão. Para a Áustria.

E aqui chegada vou acrescentar os dados do relatório da FFMS sobre as mulheres portuguesas, coordenado pela economista espanhola Laura Sagnier, apresentado ontem na conferência A Mulher, Hoje. Portugal é dos países com maior taxa de participação feminina no mercado de trabalho – seja pela necessidade de dois ordenados (baixos), seja porque as portuguesas valorizam, de facto, a independência financeira. No entanto, a divisão das tarefas domésticas fica em 72% para elas e 24% para eles. Nas tarefas de cuidados aos filhos, 69% são feitas por elas e 26% por eles. Sendo que, claro, os rendimentos que cada um traz para o agregado familiar não é em proporção inversa semelhante. Esta desigualdade no trabalho não pago existe mesmo quando elas ganham o mesmo que eles.

Não é difícil concluir que temos a receita perfeita para a maioria das mulheres portuguesas decidirem ter só um filho. E a responsabilidade deste caldo não é só dos ordenados baixos, dos horários pouco flexíveis, é também dos homens portugueses que não estão a fazer a sua parte das tarefas familiares.

Podemos negar a realidade quanto quisermos – em se tratando de assuntos que envolvem mulheres, negar é a reação por defeito –, podemos desenhar políticas supondo que um desconto nos impostos para o casal vai mudar o que quer que seja, podemos ter a narrativa da direita conservadora de que a função primária das mulheres é terem filhos e devem cumpri-la. Debalde.

O Estado aqui pouco pode fazer. Pode apenas alertar e informar. Pode instituir licenças paternais e, até, licença de uns tantos dias por ano para acompanhamento familiar exclusivo para pais. Pode ter cuidado com as mensagens dos manuais escolares que certificam. O meu filho de treze anos – que não é bloquista – no outro dia queixou-se das frases que o livro de inglês do 7º ano usava, da estirpe ‘a mãe está a cozinhar’ e ‘o pai está a jogar futebol’. Parece-me esta narrativa bem mais nociva que a distinção entre princesas e piratas com que se embirrou há uns tempos. E, sim, colocar nos programas estes assuntos de igualdade de género e as implicações todas que têm, até na natalidade.

Mas é tudo. A mudança fundamental não depende de políticas públicas.