Pedro Passos Coelho foi à Assembleia da República dizer que não recebeu qualquer remuneração regular enquanto foi presidente de uma organização não-governamental, o CPPC, ligado à Tecnoforma. Nem remuneração regular, nem irregular. Garantiu que recebeu apenas o reembolso das despesas que fez ao serviço daquela organização.

Ao contrário do que sucedeu quando anunciou que iria pedir uma clarificação à Procuradoria-Geral da República, desta vez pareceu autêntico. Pareceu ele próprio. De resto, no debate que se seguiu, só um dos líderes da oposição se colocou no mesmo nível: Jerónimo de Sousa. Separou a questão pessoal das questões políticas e colocou perguntas que se podem considerar pertinentes. O oposto do que fez António José Seguro, que teve uma das suas piores prestações de que tenho memória. Uma intervenção que terminou com o mais populista dos desafios: o de levantamento do sigilo bancário. Mas já irei a esse tema.

O tema desta sexta-feira era, ao mesmo tempo, cristalino e nebuloso. Cristalino porque se impunha que Passos Coelho dissesse se tinha ou não recebido pagamentos suscetíveis de serem declarados ao fisco ou de violarem a condição de deputado em regime de exclusividade. Disse, de forma cristalina, que não, não recebeu.

Mas isso não foi tudo: a acumulação de dúvidas nos últimos dias permitiu que a desconfiança se tivesse instalado, e a desconfiança, tal como a confiança, não aparece ou desaparece apenas pela clareza de um discurso. Importa ir às suas raízes, o que neste caso é especialmente importante.

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Boa parte da desconfiança existente foi criada pelo próprio Passos Coelho, ao ter demorado demasiado tempo a reagir ao que foi sendo divulgado pelos órgãos de informação. Se o que tinha a dizer era o que disse aos deputados, porque não começou por aí? Porque sugeriu que não se lembrava? Porque seguiu pelo caminho menos ortodoxo de pedir à Assembleia e, depois, à PGR que prestasse esclarecimentos? O primeiro-ministro pode ter tido boas razões para o fazer, mas desconheço-as. Mais: não consigo imaginar que boas razões possam ser essas. E estou convencido que Pedro Passos Coelho vai pagar um preço político por ter deixado que este clima se instalasse.

O clima de desconfiança também existiu, existe e existirá porque a história da Tecnoforma não é uma história bonita nem recomendável (se tiverem dúvidas, vejam este Explicador). É a história de mais uma empresa que vive pendurada em serviços que presta ao Estado, na sua habilidade não para gerar valor, mas para encontrar os subsídios certos. Há milhares de empresas dessas, pois o regime em que vivemos favorece a sua proliferação, mas isso não torna mais nobre a passagem de Passos Coelho por este tipo de actividade.

Finalmente há uma outra questão que está na origem da desconfiança e que funcionou como uma espécie de vírus. Refiro-me à denuncia anónima. Uma denúncia anónima é sempre um acto cobarde. Uma coisa é pedir protecção para fazer uma denúncia difícil, que pode implicar riscos para os próprios – outra é fazê-lo a coberto do anonimato total. Sem qualquer ónus de prova. Procurando transformar o acusado em culpado, pois até houve quem, referindo-se de um político, disse ser aceitável a inversão do ónus da prova.

Se aceitássemos esse tipo de regras, aceitaríamos as regras da selvajaria. Qualquer ser vivo poderia acusar quem quer que entendesse e, num clima de forte desconfiança face a tudo quanto são políticos, isso seria logo uma acusação, porventura uma condenação antecipada. Caberia ao acusado provar a sua inocência, não à mão que se esconde por trás da cortina fornecer os elementos necessários a uma condenação.

Sou dos que acham que crimes que eventualmente envolvam titulares de cargos públicos podem prescrever juridicamente, mas não prescrevem politicamente. Mas também sei que isso é uma faca de dois gumes. As garantias de defesa que qualquer cidadão tem num processo judicial ou num tribunal não existem para um político nas páginas de um jornal, e isso não é necessariamente bom, sobretudo se tudo o que tivermos de evidência for… uma denúncia anónima, inverificável.

Cavalgar esta onda de desconfiança para pedir o levantamento do sigilo bancário, como fez António José Seguro, é populista e desvairado. Tornaria ainda mais difícil encontrar alguém de qualidade que se prestasse a servir a causa pública, pois o risco de ver toda a vida devassada seria tremendo. E seria ineficaz: os verdadeiros vigaristas não deixam rasto dos seus movimentos em contas bancárias vulgares: o seu dinheiro circula por outros lados. A nossa democracia seria uma democracia pior se a fuga em frente do candidato a candidato a primeiro-ministro do PS fosse seguida pelos outros partidos – mas nem a extrema-esquerda parlamentar deu sinais de o querer fazer.

É possível que exista informação ainda desconhecida que desminta as garantias formais de Passos. Mas sem essa informação, fazer política com base na suspeição e na desconfiança é perigoso e condenável. O primeiro-ministro deu as respostas que lhe pediam – deu-as demasiado tarde, mas deu-as. O ónus de qualquer prova não está agora do lado dele.