Vivemos realmente tempos estranhos. Tempos de excessos e extremos. O estudo e a leitura da história do nosso país são alvo de autoflagelação pelos seus membros, numa base quase quotidiana. Estes seres, a que denominamos Portugueses, conseguem, com a mesma intensidade conjugar o orgulho e os complexos muito próprios ao ethos deste povo, ao ethos de ser português.

Ethos, do grego, pode definir-se como a síntese, a identidade, de uma nação e daqueles que lá vivem. O pedido de desculpa depois de ter sido pisado na fila do supermercado, não podia definir melhor o nosso ethos e é este pedido de desculpas, desta vez em relação à nossa história, que cada vez é mais discutido e argumentado na ágora do nosso país.

Não é novidade que a história, enquanto relato de acontecimentos passados tem sido das mais belas e mais fascinantes, porém também das mais perigosas e mais complexas armas políticas, sujeita a instrumentalizações e manipulações. É, portanto, capital, que o bom senso e um ajuizado discernimento primam no debate público e político. O padrão dos Descobrimentos ou a recente morte do militar português Marcelino da Mata são exemplos de feridas bem abertas no ethos deste povo.

Será que “aqueles que por obras valerosas, se vão da lei da morte libertando” devem, pelas vozes dos seus compatriotas do século XXI, pedir desculpa, como se de um encontrão no talho se tratasse? Não me parece. Porque do alto de suas torres de marfim, quem são os bem pensantes do século XXI, que com todo o conhecimento do mundo à distância de meia dúzia de cliques e de uma mão de décadas (e até mesmo séculos) de avanço de estudo, para julgar os atos daqueles que pisaram a areia das praias salgadas pelo Atlântico Sul? A humanidade, mas também a ingenuidade, da descrição de Pero Vaz de Caminha naqueles que eram verdadeiramente “grandes passos para humanidade”, é digna do melhor desta mesma humanidade e não podem ser lembrados através de filtros complexados.

Não tenhamos receio de olhar para estes momentos da nossa história e para os símbolos que os representam, com distanciamento, porém com orgulho, com frieza académica, mas também arrepiados por nos reconhecermos em valores tão humanistas, audazes e prodigiosos.

Peço também que nos reservemos o direito de inventário para, assim, desconjuntar o nosso passado e aprendermos com os nossos erros, apoiados por quem mais sabe. Não vamos subjugarmo-nos a um lápis azul prestes a riscar séculos de história, ou a lançar para o espaço monumentos que nos dizem tanto. Se assim não for, para que serve, então, o estudo da história.

Uma reflexão ponderada e racional permite-nos tanto proteger o legado do nosso ethos para, desta maneira, o transmitir de geração em geração, mas igualmente apontarmos o dedo às feridas, as nossas e as daqueles que pelas nossas mãos sangraram, mesmo que o álcool etílico doa ao primeiro contacto, é essencial para desinfetar a ferida.

É basilar um apaziguamento da nossa história, vital numa democracia moderna deste século, onde a tartaruga é a metamorfose de uma verdade difícil e a lebre de uma mentira simetricamente fácil. Estou convencido que esta lebre arrogantemente mentirosa perde a corrida. Fontaine ensina-nos que o dom da perseverança e superação, tantas vezes observado na nossa história, vence esta corrida.

“Novos mundos ao Mundo” demos. E condenados a repetir erros passados estaremos, se estes, como aliás se não nos lembrarmos das nossas vitórias, não forem devidamente digeridos, estudados e ensinados. A abordagem americana, da união da nação de volta de um pedaço de papel, a constituição, não me agrada, a britânica, em redor da soberana, igualmente, no entanto o “Liberté, Égalité, Fraternité” francês, é a que mais me agrada. Partilho ser português contigo, porque me identifico em ti, porque partilhamos a mesma história descomplexada, não porque nascemos no mesmo sítio ou porque os nossos antepassados têm a mesma origem. Mas porque, encontro aquele ethos, de que há pouco falava, no meu compatriota. Porque os dois sentimos saudade e porque da mesma alma somos feitos, uma alma portuguesa.

Peço desculpa, mas, desta vez, não peço desculpa, foi o senhor que me pisou.