A recentemente aprovada lei de amnistia e perdão (redução de penas) de jovens (de 16 a 30 anos) é, sem dúvida, uma das melhores formas de honrar a próxima visita do Papa Francisco ao nosso país no âmbito da realização da Jornada Mundial da Juventude. É assim porque esta medida vai de encontro a um dos mais insistentes apelos deste Papa. Estou convicto de que ele rejubilará com ela, mais do que com quaisquer manifestações, oficiais ou pessoais, de respeito ou afeto.
Na minha qualidade de presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, recebi ecos de várias pessoas empenhadas no setor da Pastoral Penitenciária, da Igreja Católica, que estão em contacto regular com reclusos, mais ou menos jovens, e que me transmitiram as esperanças que estes depositavam numa lei como esta, precisamente nesta ocasião. Esses visitadores prisionais podem testemunhar o profundo sofrimento das pessoas reclusas, mas também a riqueza humana que nestas de modo algum se perdeu. Em muitas dessas pessoas reclusas há uma vontade sincera de reconciliação com a sociedade, apesar de esta insistir na sua marginalização.
Um dos temas mais destacados da mensagem que o Papa Francisco tem dirigido a toda a humanidade é, na verdade, o da solicitude para com os dramas dos reclusos e o do apoio à sua reabilitação e reinserção social. Afirmou ele, por exemplo, que «a Igreja propõe uma justiça que seja humanizadora, genuinamente reconciliadora, uma justiça que leve o delinquente, através de um caminho educativo e de corajosa penitência, a uma reabilitação e à total reinserção na comunidade»[1] e que «o comportamento passado de uma pessoa não deve ser usado para lhe negar a oportunidade de mudar, de crescer e de dar um contributo à sociedade»[2]. A exposição de motivos da proposta de lei entretanto aprovada pelo Parlamento alude, referindo-se ao Papa Francisco, ao seu «testemunho de vida e de pontificado fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal».
Esta perspetiva do Papa Francisco está em harmonia com os mais estruturantes princípios da nossa Constituição e do nosso sistema penal. Este é também um motivo por que não tem sentido invocar o princípio da laicidade do Estado para contestar uma medida como esta. Os princípios que a inspiram são os da Constituição e do nosso sistema penal, que, em grande medida, estão em sintonia com o magistério do Papa Francisco. De resto, não se trata de uma iniciativa inédita. Ocorreu por ocasião das visitas de Paulo VI em 1967 e de João Paulo II em 1982 e em 1991.
Também a propósito da realização da Jornada Mundial da Juventude, convém recordar que o Estado é laico, mas a sociedade não o é. O Estado deve servir uma sociedade que não tem de ser laica, uma sociedade onde as religiões assumem um relevo cultural e social a que ele não pode ser indiferente, sob pena de não a servir como é seu dever. Os políticos de vários quadrantes, católicos ou não católicos, que convictamente têm apoiado essa Jornada (sem esse apoio não seria sequer possível realizá-la) compreendem isso, tal como compreendem a projeção universal que esse evento confere ao nosso país. Que a visita do Papa Francisco e a realização da Jornada Mundial da Juventude, um encontro de dimensão e alcance nunca vistos entre nós, sejam motivo de aprovação desta lei é algo que se coaduna com esta visão aberta e positiva da laicidade.
É verdade, porém, que a esperança das pessoas reclusas, e de quem as vem acompanhando, ia para além de uma redução de penas de prisão limitada aos jovens. Compreende-se o sentido simbólico desta limitação (pois é um grande encontro juvenil que está subjacente à oportunidade da medida), mas não me parece que ela se justifique à luz dos princípios que inspiram a lei e a motivam. A reabilitação e reinserção social a promover é a de todos os reclusos, não apenas a dos jovens.
Tal não significa, porém, que essa limitação seja, como já se tem dito, arbitrária, discriminatória e, por isso, inconstitucional. Porque os malefícios da pena de prisão são particularmente acentuados nas idades mais jovens, a legislação penal vigente entre nós contempla um regime especial para jovens de 16 a 21 anos (o Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de setembro) que facilita a aplicação de penas alternativas em relação à de prisão. E também leis anteriores de perdão e amnistia (como a Lei n.º 29/99, de 12 de maio, por exemplo) continham normas especiais, mais favoráveis, aplicáveis a jovens de 16 a 21 anos (mas também a idosos, de idade superior a 70 anos). É à luz dessa especificidade que se justifica a limitação da aplicação desta lei aos jovens.
Outra restrição que muito limita o alcance da lei aprovada é a da exclusão da sua aplicação a uma extensa lista de crimes tidos por mais graves (segundo critérios ligados à sensibilidade da opinião pública ou a opções políticas). Compreende-se que assim se pretende evitar algum sinal de indiferença perante a gravidade desses crimes. No entanto, a gravidade relativa dos vários crimes já se reflete na medida concreta da pena, depende em abstrato do tipo de crime, mas também de várias circunstâncias concretas, agravantes e atenuantes. Por isso, essa exclusão pode conduzir, essa sim, a resultados eventualmente arbitrários.
Já me parece perfeitamente justificado (o que sucede nesta lei como em leis de amnistia e perdão anteriores) que se salvaguardem os direitos das vítimas e que a redução das penas se sujeite a uma condição resolutiva, nos termos da qual essa redução será revogada se a pessoa que dela beneficia cometer infrações dolosas nos próximos três anos.
Na verdade, desta forma se evita que se confunda esta medida de clemência com algum sinal de laxismo ou de indiferença perante a gravidade da prática de crimes (também não é essa, certamente, a perspetiva do Papa Francisco, para a qual o perdão não anula as exigências da justiça). A clemência vem associada à confiança num propósito de mudança. Se essa confiança for traída, há que daí retirar as necessárias consequências com a revogação da redução de pena.
O sentido mais autêntico que deve ser dado a esta medida é, pois, o de um gesto que exprime a confiança da sociedade portuguesa nos propósitos de mudança e reconciliação com a sociedade da parte das pessoas reclusas e que revela, por isso, também um propósito de reconciliação da parte da sociedade para com essas pessoas.
[1] Carta aos participantes no XIX Congresso Internacional da Associação Internacional do Direito Penal e do III Congresso da Associação Latino-americana de Direito Penal e Criminologia, de 30 de maio de 2014
[2] Carta aos participantes no XIX Congresso Internacional da Associação Internacional do Direito Penal e do III Congresso da Associação Latino-americana de Direito Penal e Criminologia, de 30 de maio de 2014