Os relatos sucedem-se e em cada dia que passa aumenta a nossa angústia. Primeiro as vítimas eram números abstractos, depois vieram os nomes concretos e agora sabemos graus de parentesco e de proximidade. Mais, conhecemos pessoas que perderam toda a família ou viram morrer pais, filhos, irmãos e vizinhos, todos de uma vez.
O terror das chamas só é comparável ao pavor de continuar vivo naquela imensa terra carbonizada, a cheirar a fumo e a carne queimada. Velhinhos ficaram praticamente sozinhos em lugarejos e pequenas aldeias, em casas enegrecidas, sem sinais de vida que se avistem das suas janelas. Aliás, muitas deixaram de ter janelas onde apoiar os corpos cansados e os braços quebrados de tantas noites sem dormir.
Para que serve o tempo? Para que serve este tempo em que tudo ficou destruído e os que escaparam sobrevivem a muito custo? Não há nem haverá respostas simples para perguntas tão complexas, mas os que voltaram do inferno interrogam-se e voltam a interrogar-se. Questionam-se sobre o valor da própria vida e alguns, não encontrando sentido nem capacidades, dão passos desesperados optando por caminhos que podem não ter retorno.
Custa ler, ver e ouvir falar dos que morreram e dos que preferiam ter morrido. Custa admitir que uma tragédia nunca vem só. Dói tudo, mas em especial ofende o martírio, o calvário em que ficaram tantas pessoas que agora andam às cegas, sem saberem para onde ir nem o que fazer. Tivemos notícia de que as verbas, a água, os cobertores e os mantimentos doados por legiões de voluntários solidários chegaram ao seu destino, mas não bastam. Agora era preciso mandar com urgência mais um comboio de especialistas em acompanhamento de sobreviventes em estado de choque.
Resgatar bens e vidas não passa apenas por salvar pessoas e animais, libertando-os dos escombros. Esse trabalho está feito e aparentemente foi bem feito. Falta o outro, que demora eternidades e dá sentido a este tempo. Falta reorganizar e reconstruir. E falta ouvir, conversar, validar sentimentos e perdas, avaliar cada caso, agir e tratar todos, sem excepção, para que combinem as ajudas externas com os recursos internos de forma a conseguirem recuperar. Cada sobrevivente é ao mesmo tempo um zombie e um herói de guerra. Um veterano que não sabe ao certo como foi possível não morrer em combate.
Nestes dias terríveis de contagens e pilhagens, todo o foco de todos os políticos e responsáveis abrangidos pelo holocausto devia ser posto exclusivamente ao serviço dos que sobreviveram. Sejam os que atravessaram o fogo, sejam os que enfrentam agora a realidade da perda das suas casas e animais ou, pior, os que são tocados pela tenebrosa contagem das baixas humanas. Sei de um homem que perdeu quatro primos da sua idade porque me cruzei com a sua história através de um amigo comum. E sei de filhos que perderam pais, e de pais que morreram com os seus filhos todos.
Sei eu, sabe o Primeiro Ministro, sabem os seus ministros, sabem os que os apoiam e os que se lhes opõem, sabem os grandes, mas também os pequenos, e sabe toda a gente. Finalmente todos convergimos no olhar (pelo menos) e todos percebemos que esta história não pode acabar assim. As fracturas estão expostas e somos obrigados a reordenar o território, os dinheiros e as prioridades. Afinal, estas são as questões verdadeiramente fracturantes, que explodem, ardem, queimam e matam inocentes.
Foi precisa uma catástrofe natural, seguida de um caos institucional para António Costa desfazer aquele seu sorriso de arlequim e passar a falar como gente, para gente. Obrigado a responder a questões imprevistas sobre acontecimentos que deviam estar categoricamente previstos, passou rapidamente a pierrot comovido. É o mínimo, mas não chega. Precisamos de o ouvir garantir que todas as pessoas voltarão a ter casa em breve, e todas, absolutamente todas, serão bem acompanhadas neste caminho de pedras que agora percorrem descalças, como que despidas.
A nudez material e emocional das vítimas choca, especialmente por sabermos das contradições e incoerências que imperam na gestão dos dinheiros públicos. Por um lado a disputa anual dos ministros pelas verbas do Orçamento do Estado é um clássico eterno, por outro a única coisa que sabemos sobre a proposta para este ano é que há uma previsão de despesa na ordem dos 211 milhões de euros para a protecção civil e incêndios, mas ninguém sabe ao certo como será distribuído este dinheiro. Ou seja, ninguém nos garante que a aposta seja a prevenção, em vez de acabarmos a gastar a maior fatia no combate aos fogos. Quanto ao Fundo Florestal Permanente, também não se sabe quanto há, para quê.
Escandalizamos-nos perante reformas chorudas, offshores e pagamentos misteriosos; ficamos de cara à banda com leis feitas a tamanho e a feitio para estrangeiros que vêm para cá morar porque aqui não pagam impostos; indignamos-nos com as vergonhas que se passam na banca e não só; interrogamos-nos sobre um sistema nacional de saúde que subsidia quem não se importa nada com a vida, especialmente em estado de maior vulnerabilidade, mas há outros escândalos que surpreendem, nomeadamente usar dinheiro dos contribuintes para pagar trampolinices de maus gestores com uma rapidez que não se aplica do mesmo modo quando se trata de gastar com vítimas de catástrofes, a quem muitas vezes é imposta uma longa e penosa espera.
O tempo, qualquer tempo, seja de facilidade ou adversidade, também tem que ser um tempo de oportunidade. Oportunidade para repensar estratégias no sentido de fazer mais e melhor; oportunidade para agilizar processos; oportunidade para averiguar causas, reordenar prioridades e canalizar verbas. O nosso dinheiro tem que ser criteriosamente gasto com quem necessita, em tempo útil, sem demoras desnecessárias.
Assim como a luz traz sempre consigo uma sombra, também a sombra é indissociável da luz. Uma não existe sem a outra e pensei nisto quando me deparei com a história do homem que perdeu os seus quatro primos da sua idade. E quando vi como o fogo e a dor por todas as perdas extenuaram os olhos dos sobreviventes que vamos conhecendo. Todos têm os olhos carregados de sombras, mas está nas nossas mãos ajudá-los a acreditar que voltarão a ver luz.