O caso da chamada lista VIP tem estado focado em responsabilidades políticas, em particular nas do Secretário de Estado Paulo Núncio. Compreende-se. É ano eleitoral e a possibilidade de fragilizar o Governo entusiasma os partidos da oposição. Mas, percebe-se agora, o ponto central neste caso é bem mais gravoso do que uma mera lista e bem mais profundo do que uma discussão circunstancial sobre se se deve ou não demitir um membro do Governo. A questão está na constatação de que o Estado não está a cumprir o seu dever de proteger a privacidade fiscal dos cidadãos. De todos os cidadãos, VIP ou anónimos. E bastou uma auditoria relâmpago e rudimentar da CNPD (Comissão Nacional de Protecção de Dados) para destapar a forma irresponsável como toda essa informação é gerida. Assusta imaginar o que se descobriria com uma investigação levada às últimas consequências.
De acordo com a CNPD, são cerca de 14 mil os indivíduos que têm acesso directo às bases de dados. Todo o tipo de funcionários do fisco – desde o estagiário ao director-geral. E todo o tipo de pessoal externo, nomeadamente de empresas privadas subcontratadas para a gestão desses dados. Não há regras, não há controlo dos acessos e não há fiscalização sobre a utilização dos dados. Ou seja, por coscuvilhice (curiosidade sobre o vizinho), ou para fins profissionais (venda de informação a empresas), os dados estão à mercê da violação, dentro e fora do Estado. E, do que se apurou, são mesmo violados. Não há outra forma de ver as coisas: isto é inadmissível.
Ora, para além de inadmissível, a situação representa uma novidade. Já se sabia que o Estado muitas vezes não se comporta como uma pessoa de bem, impondo cegamente sobre os cidadãos o cumprimento de regras e prazos que ele próprio ultrapassa quando é do seu interesse. Já se sabia que, entre os dirigentes do Estado, há quem se sirva a si mesmo em vez de ao público, usando o poder para construir redes de corrupção (vistos Gold). Agora sabemos que o Estado, no seu funcionamento normal, não assegura o sigilo fiscal dos contribuintes. Alguém se arrisca a garantir que se trata de um caso isolado e que a informação pessoal dos cidadãos não é tratada com a mesma ligeireza em outros sectores do Estado?
Face à gravidade do caso, é notável que o desleixo da autoridade tributária relatado pela CNPD não tenha provocado um centésimo da indignação que se gerou em torno da lista VIP. Sim, por um lado, surge como óbvio que isso se deve ao facto de o relatório não apontar o dedo a membros do Governo – ou seja, carece de utilidade política para comentadores e partidos. Mas há mais nesta história do que apenas o óbvio. Ano após ano e caso após caso, o país demonstra uma tolerância inabalável perante as insuficiências da acção do Estado. Perdoa-lhe os erros, relativiza os seus atrasos, finge que não vê os seus tropeções. E, pelos vistos, não há relatório, por mais gravoso que seja o seu diagnóstico, que consiga abalar essa indulgência. Percebe-se porquê: a relação que o país mantém com o Estado está baseada em fé e não em confiança – assenta em convicções em vez de em provas concretas.
Essa tolerância é a raiz do problema: o Estado não tem incentivos para ser responsável enquanto não for responsabilizado. Por ideologia, tradição ou comodismo, acreditou-se durante décadas (séculos?) que o Estado era infalível. Não é. Mas, para prejuízo colectivo, a ilusão perdurará enquanto um relatório como o da CNPD não fizer disparar os alarmes. Quem cala, consente. E inquieta ouvir tanta gente calada.