António Silva levanta-se do sofá e começa a imaginar o golo do Sporting no Porto. O seu jogo de cintura é impressionante. Poderia muito bem ser o sexto violino. “A bola é posta em jogo. Os nossos avançam como leões. Canário recebe a bola e passa a Travassos, Travassos dribla Guilhar e passa a Vasques, Vasques recebe e passa a Albano. Albano passa a Jesus Correia. Jesus Correia centra e Peyroteo, completamente isolado, corre para a área e mete golo.” Nesse momento, o senhor Anastácio dá um pontapé no ar e vira a mesa do avesso. É o Leão da Estrela, filme português de 1947 com humor e futebol entrelaçados pela forma mais simples e engraçada possível. Naqueles 121 minutos de acção, não há cá transpiração. É cem por cento de inspiração. Comédia pura, portanto. Sem esforço, como deve ser. Os diálogos são geniais. O filme, idem idem. António da Silva, aspas aspas.
É um clássico. Como Peyroteo, o homem dos dois golos imaginários no “Leão da Estrela”. E também o dos 693 golos bem reais. Isso mesmo, Peyroteo marca um total de 693 golos em tão-só 430 jogos, entre provas regionais, nacionais e internacionais. É único, um fenómeno. Tanto à escala nacional, como melhor marcador de sempre da 1.ª Divisão à conta dos 331 golos (Eusébio 320, Gomes 317), como à escala planetária, como goleador com melhor média da história (1,6) graças aos tais 331 golos em 197 jogos.
Há mais, atenção. Os números mantêm-se absurdos sob qualquer prisma. A influência de Peyroteo é notória, até na selecção: 14 golos em 20 internacionalizações. Falamos dos anos 40, época em que Portugal é um parente pobre do futebol mundial e perde a torto e a direito como quem lhe aparece à frente. Se fizermos zoom, a selecção acumula 32 golos nesses 20 jogos e a fatia de Peyroteo ocupa 43%. A brincadeira continua ao serviço do Sporting, sobretudo no clássico com o FC Porto: 33 em 102 golos ao Porto dá quase 1/3, qualquer coisa como 30,9%. E com o Benfica? O Sporting marca 154 vezes, Peyroteo 64 (é 24%). Ligeiramente melhor com o Belenenses (65 em 168 = 25.8%).
É, para começar, o melhor marcador de sempre dos clássicos (vs. SLB e FCP), com 71 golos em 69 jogos. Sim, não nos enganámos: tem mais golos que jogos. Merece pois um lugar na história do Sporting e do futebol português, até porque a sua apetência pela baliza lhe dá mais quatro recordes: jogador com melhor média de golos por partida na 1.ª Divisão em todo o mundo (331 em 197), melhor marcador do campeonato nacional (331) e único a marcar nove golos em 90 minutos na liga (14:0 ao Leça, em Fevereiro 1942). Acrescentemos-lhe então um quinto: o de maior goleador fora de casa na liga, com 132 golos (Eusébio 122, Gomes 83, Matateu 64).
Quer saber a melhor? Peyroteo acumula os 331 golos na 1.ª divisão e nenhum deles é de penálti.
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Pausa, é obrigatório.
Nem um. Incrível e verídico.
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Zero, insistimos. O homem é cinco vezes melhor marcador da 1.ª Divisão sem qualquer penálti. Será possível, realista? Passo um dia inteiro a rever os jornais da época, os golos um a um e é tudo de bola corrida. Seja pé direito, pé esquerdo ou cabeça. Seja dentro ou fora da área. Seja um encosto fácil ou um pontapé do outro mundo. Nunca é de bola parada, sempre corrida. Que abuso.
Curiosidades maiúsculas, duas. A primeira tem a ver com aselhice. Ya, é verdade, Peyroteo e aselha é dupla nunca vista. Ou talvez não. Peyroteo é um artista ao contrário com a bola e o guarda-redes parados. Uma só tentativa, um falhanço. Defende Tibério, da Académica, em 1940. A segunda relaciona-se com o número de penáltis do Sporting no período Peyroteo, entre 1938 e 1949. Qualquer coisa como 41, marcados por inúmeros companheiros de equipa como Albano (12), António Marques (1), Barrosa (3), Canário (1), Cruz (10), Frazão (2), Galvão (3), Lourenço (1), Pireza (3), Rui de Araújo (2) e Travassos (2). Ufaaaa. Se Peyroteo fosse menino para a linha dos 11 metros, o seu recorde seria ainda mais grandioso.
Sportinguista por influência dos dois irmãos mais velhos, ambos jogadores no Sporting Clube de Moçâmedes, o jovem Fernando é um rapaz bem constituído e multidesportivo. Daí que pratique remo, basquetebol e natação, além de futebol. Faz-se jogador do Atlético Moçâmedes, depois Académico de Sá da Bandeira, finalmente Sporting Clube de Luanda. A sua chegada a Lisboa é um daqueles movimentos do destino: a mãe de Peyroteo recebe uma carta dos médicos a impor a sua visita para se tratar. Diz Peyroteo na sua autobiografia. “Como funcionária do Estado – professora em Moçâmedes –, tinha direito a gozar licença graciosa na metrópole. E porque o seu estado não permitia que viajasse sozinha, convidava-me a vir com ela”. Aí está, Peyroteo a bordo do Niassa, já a despertar a cobiça dos rivais. “O barbeiro do navio era benfiquista ferrenho e fez tudo quanto podia para me fazer vestir uma camisola encarnada; em contrapartida, o amigo Fonseca, que era trompetista da orquestra, era leão dos quatro costados. Ali, em pleno Atlântico, travou-se a primeira luta entre Benfica e Sporting à minha pessoa. E eu só os ouvia e sorria.”
Aos 19 anos de idade, Peyroteo atraca em Lisboa e é logo recebido por um amigo de longa data: Aníbal Paciência, já então jogador do Sporting e “temível adversário no ténis de mesa em Angola”. Com ele, dois directores do Sporting chamados Francisco Franco e Filipe Conrado. “Após uma breve troca de palavras, fui convidado a visitar a sede do clube, na Praça dos Restauradores, o que aceitei verdadeiramente emocionado.” O problema é a movida nesses locais de lazer, digamos assim. “Como bom desportista, sempre evitei permanecer em salões onde há perfumes ricos, raparigas interessantes, fumos de tabaco e sons. Saí.” Peyroteo só pensa na bola e está desejoso de treinar com o Sporting. Curiosamente, o primeiro treino é só com o treinador húngaro Joseph Szabo. Outros tempos. “Passes de cabeça, com o interior do pé esquerdo e depois com o do direito. Chutei em todos os estilos.” Como se isso fosse pouco, Szabo vai à baliza e propõe um concurso de remates à baliza. Às tantas, interrompe a sessão. ”Sinhor Fernando, assim ser canja! Querer furar barriga de guarda-redes? Atirar para junto dos postes, ir ver que dificuldade ter guarda-redes. Experimentar se fazia favor.” E que tal? “Em cada dez remates, seis iam para fora. O que fazia então o treinador? Obrigava-me a ir buscar a bola, a correr. Duas horas depois, largou-me e disse: ‘Sinhor Fernando ter jeito, mas precisar trabalhar muito. Bom pontapé, bom corrida. Precisar muito treining de técnica de futebol.”
Passam-se uns dias, uma semana. Eis Peyroteo no primeiro treino conjunto do Sporting. “O treinador disse-me: Fernando amanhã ir fazer seu primeiro treining de conjunto. Não perturbar com malandragem de companheiros. Bons rapazes mas gostarem de brincadeiras. Sinhor ser novato e ter de suportar gozadelas. Não engolir a isca, não ligar. Ter-se força suficiente para impor-se.” No dia seguinte, Szabo dá-lhe o equipamento dos titulares e Peyroteo marca três golos ao mítico Azevedo. Está lançado, o rapaz. E o Sporting, já agora. A estreia dá-se a 12 Outubro 1937, nas Salésias. É um Benfica-Sporting para o torneio triangular. Szabo liga aos pés a Peyroteo com gesso e dá a receita: “Muita atenção, senhores: a avançado-centro jogar Fernando. Rapaz novo, não ter experiência de jogo. Sinhores mais velhos ajudar para ele, bem de clube. Não fazerem malandragem. Não ter graça nenhum. Brincadeira custar dez por cento para sinhores. Atenção de jogo, sinhores.” Resultado? Cinco-três para o Sporting, com dois golos de Peyroteo. “Embora não tivesse feito um grande jogo, nem outra coisa seria de esperar em campo relvado, que pisava pela primeira vez, botas com pitons, que nunca usara, e companheiros que quase não conhecia, também é verdade que não fiz aquilo a que se chama de figura de urso.”
Inicia-se a lenda. “Nos primeiros tempos, vivi em Sintra e o comboio saía dessa encantadora vila às seis e três da manhã para chegar ao Rossio às 0645, aproximadamente. Nos Restauradores, tomava o carro eléctrico e chega ao Estádio Alvalade por volta das 0720, com tempo suficiente para me equipa e treinar a partir das 0745.” Um belo dia, o despertador esquece-se de tocar às 0515, Peyroteo perde o comboio habitual e chega tarde ao treino. É multado, claro. “Sinhor Fernando ter que dar exemplo, todos eguales. Se desculpar, outros dizerem para mim que você ser menino bonito. Todos eguales.” Toma lá uma multa de 70 escudos. Os tais 10% do ordenado. Ou não? “À saída do treino, o mestre insiste em levar-me à baixa e, na Praça dos Restauradores, diz-me ‘Fernando, eu não dar 10%, mas vamos comprar despertador novinho em folha para tocar sempre. Custar cinquenta escudos, poupar vinte escudos.”
Com despertador ou sem ele, Peyroteo acorda qualquer defesa com os seus pontapés fantásticos. A primeira época no Sporting é especial. Na estreia oficial, dois golos ao Casa Pia (7-0 nas Salésias, para a primeira jornada do Regional de Lisboa). No primeiro dérbi a sério, 1-0 ao Benfica, obra e graça de Peyroteo. No segundo, 2-2 nas Amoreiras com bis do número 9. No campeonato da 1.ª divisão, os seus números ultrapassam qualquer limite com golos em 13 dos 14 jogos (só lhe falta marcar ao Porto, na terceira jornada). De resto, é um ver-se-te-avias com cinco golos em três jogos. Cinco é dose, chi-ça. Que o digam Académico do Porto (6-0), Académica (7-1) e Carcavelinhos (13-0). Sem esquecer cinco bis mais dois hat-tricks. Naturalmente, é o melhor marcador do campeonato com 34 golos. A essa alegria soma-se a primeira internacionalização pela selecção, em Frankfurt, com a RFA (1-1). “Certa manhã, recebi um postal do Sporting a convocar-me para o treino da selecção e julguei tratar-se de uma brincadeira. Sem perda de tempo, fui à sede e obtive a confirmação que se tratava, na verdade, de uma ordem do seleccionador Cândido de Oliveira”.”
Dúvidas há entre Fernando Peyroteo e Guilherme Espírito Santo, o elegante avançado-centro do Benfica, campeão do salto em comprimento. “Logo que o comboio se pôs em andamento, de Lisboa para Paris, eu e o Espírito Santos fomos pedir ao Capitão Maia Loureiro, comandante da caravana, que nos deixasse dormir no mesmo compartimento. Fomos atendidos. Ao ver duas camas, uma por cima da outra, o Guilherme determinou: ‘tu ficas cá em baixo, não vá partir-se este zangarelho que segura a cama e eu ficar esborrachado com esses 80 quilos bem pesados’”. O resto da viagem é assim, sempre a trocar piadas entre eles e até os companheiros. “Esses dois andam tão juntinhos que até parecem um só, mas a verdade é que estão ambos com vontade de se envenenarem um ao outro para jogar com a Alemanha.” Joga Peyroteo. Que não marca. Só à segunda, com a Suíça, em Milão, na qualificação para o Mundial-38. O curioso de Peyroteo na selecção é a veia goleadora com o país vizinho: das 20 internacionalizações, cinco com Espanha; dos 14 golos, sete com Espanha (três bis). “Se alguém me dissesse que ia vestir a camisola da selecção portuguesa para um encontro internacional com a Espanha quando eu ainda era um rapazola de 13 ou 14 anos e jogava futebol na equipa dos miúdos da minha terra angolana, duvidaria do estado mental desse bruxo!”
À primeira época cheia de golos segue-se uma outra menos efusiva, culpa de uma arreliadora lesão. Isso não impede Peyroteo de acumular mais golos que jogos, tanto no campeonato nacional (14-10) como nas outras competições (45-26). Aliás, o avançado-centro mantém sistematicamente essa dinâmica em 12 épocas de Sporting no que diz respeito ao balanço da época, englobadas todas as provas, O que é realmente notável. A nível de títulos, é cinco vezes o melhor marcador do campeonato e só é destronado por Eusébio (seis), que, coincidência das coincidências, o estreia na selecção portuguesa no Luxemburgo, em 1961. É ainda cinco vezes campeão português e levanta cinco Taças de Portugal (cinco golos em finais, um nas Salésias e quatro no Jamor).
Por falar no Estádio Nacional. A Supertaça, aquele jogo de início de época entre o campeão e o vencedor da Taça de Portugal, é uma modernice dos tempos recentes (final dos anos 70). Antes, em 1944, num exercício de futurismo, o Estado Novo – debaixo do slogan “Salazar promete, Salazar cumpre” – promove a primeira Supertaça. Oficiosa, claro. Que serve para inaugurar o Estádio Nacional, um projecto do engenheiro Duarte Pacheco, influenciado pela construção do estádio Olímpico de Berlim. O campeão nacional Sporting ganha ao Benfica, vencedor da Taça de Portugal. Em causa, a Taça Império. Peyroteo marca o primeiro golo do estádio, aos 55 minutos. Por muitos anos que passem, o seu nome está intimamente ligado à história do futebol português. Tal como ao dia 22 Fevereiro 1942.
É um domingo, dia da 6.ª jornada da 1.ª divisão. No calendário há um FC Porto-Benfica. O quê, Porto-Benfica (4-1) na Constituição? O que é isso comparado com um Sporting-Leça? Com este Sporting-Leça, queremos dizer. Nessa tarde de chuva, o Sporting não só entra na história do campeonato pelo resultado de 14-0 (ainda hoje a oitava maior goleada de sempre a nível mundial) como também por Peyroteo, autor de nove golos. A avaliar pela crónica no “Diário de Notícias”, nove até é pouco. “Com mais empenho por parte de Peyroteo, é de crer que tivesse estabelecido um recorde ainda mais impressionante.” Então o homem marca quatro na primeira parte, cinco na segunda e ainda o acusam de molenga? Tssss tsss.
Seis anos e tal depois, já na época 1947-48, Peyroteo não consegue pela primeira e única vez superar a média de um golo por jogo na 1.ª divisão. Adoentado, o número nove está três meses sem jogar e só reaparece em pleno no onze durante a segunda volta. É o suficiente para o Sporting revalidar o título de campeão nacional, à custa do Benfica. Tudo acontece na tarde do dia 25 Abril 1948, nas Amoreiras (onde agora é o Liceu Francês), então casa do Benfica. Com dois pontos de avanço e em vantagem no confronto directo (3-1 no Lumiar), o Sporting está obrigado a ganhar por idêntica marca ou superá-la. Ninguém se atreve a antever tal desfecho.
Ninguém? P-e-y-r-o-t-e-o. É ele o homem da tarde. Faz o 1-0, de cabeça. E o 2-0 com o pé direito, a passe de Travassos. Intervalo. Adianta o 3-0, com o pé direito, na conclusão de uma jogada mirabolante de Jesus Correia. E fixa o 4-0, também com o pé direito, na sequência de um serviço de Albano. Quatro, Peyroteo marca quatro golos ao Benfica nas Amoreiras. E em 36 minutos. O Sporting faz-se ali bicampeão nacional. Honra seja feita a Peyroteo, terá sido esta a tarde mais gloriosa da sua extensa carreira, interrompida aos 31 anos, com o intuito de saldar as divídas de uma loja sua na Rua Nova do Almada. Para trás, uma série de recordes nacionais e mundiais. Um jogador de inconfundível classe. A resposta vem em forma de pergunta. Genial? Letal? Grandioso? Continuam a faltar adjectivos para qualificar exactamente Peyroteo, avançado de culto, fenómeno mundial na arte de marcar golos. Sempre de bola corrida.