Pouco depois de se saber que Vítor Aguiar e Silva era o vencedor do Prémio Camões de 2020, um professor catedrático reformado da Universidade de Coimbra, José Oliveira Barata, escreveu num post na sua página de Facebook, segundo informa o PÚBLICO, que Aguiar e Silva fora um “delfim do regime”, por ter sido deputado da Assembleia Nacional durante a ditadura e por ter colaborado “com a PIDE na denúncia dos estudantes da sua própria Faculdade”.
Perante este arrazoado não sei se começar pelo delfinato se pelas hipotéticas delações à PIDE feitas por Aguiar e Silva, na sequência de acontecimentos ocorridos na Universidade de Coimbra, entre Maio e Junho de 1969.
Comecemos pelo óbvio, ou seja pela PIDE: não sei se o professor Aguiar e Silva, que não conheço a não ser como leitora de uma muito pequena parte da sua obra, denunciou à PIDE algum dos envolvidos na crise académica de 1969 (para quem não recordar os detalhes desta sucessão de acontecimentos aconselho que passe os olhos pelo post scriptum deste texto). Mas, caso tal tivesse acontecido, teríamos de admitir que Aguiar e Silva teria de ser particularmente distraído (para não dizer pior) e notoriamente mal informado, pois a investigação dos acontecimentos da crise académica de 1969 em Coimbra não foi entregue à PIDE mas sim à Polícia Judiciária e foi com base no trabalho da PJ que foram instaurados os processos aos estudantes. É a PJ quem interroga e é a PJ quem faz comunicados. A que propósito vem aqui a PIDE?
A PIDE deu para muito e já dava antes do 25 de Abril: quando nos meios progressistas se pretendia destruir a reputação de alguém lá vinha a história da PIDE, aí não na versão informador mas com o bizarro “ter falado na PIDE”. O episódio que envolveu Mário Dionísio, escritor e pintor que politicamente estava do lado oposto ao de Aguiar e Silva, é um caso exemplar de como essa insinuação foi utilizada. Sobre Mário Dionísio caiu durante anos o labéu de “ter falado na PIDE”. Deixando de lado o absurdo subjacente a alguém se atrever a condenar outros por não ter “resistido à tortura”, acontece que tudo nesta insinuação era falso. O boato terá sido lançado em 1953, quando num curso sobre pintura que Mário Dionísio estava a leccionar, um dos presentes disse sobre o professor: “Um tipo bestial. É pena como se portou enquanto esteve preso. Meteu muita gente dentro.” Acontece que Mário Dionísio nunca tinha sido preso pela PIDE, logo não era nem deixava de ser responsável pela prisão de quem quer que fosse. Contudo o anátema ficou. Porque aconteceu isto? Esta acusação foi o preço que Mário Dionísio teve de pagar por no ano anterior a este episódio, ter abandonado o PCP, partido em que militava desde 1945. (Note-se que não deixara de ser simpatizante do PCP, apenas considerava não estar em condições de ser militante.)
Depois do 25 de Abril, e passada a fase em que os jornais se encheram de anúncios de padeiros, ourives, campistas, médicos e comerciantes que declaravam “por sua honra” nunca ter pertencido à PIDE, as denúncias de ligações àquela polícia passaram a funcionar a gosto. Aliás não fosse a PIDE, como qualquer polícia política um assunto sério e doloroso, até se poderia dizer que passaram a funcionar de forma discricionariamente anedótica: assim, enquanto o marechal Costa Gomes, presenteado pela PIDE com o seu crachat de ouro, passava a homem da revolução, o labéu da ligação à PIDE era usado para descredibilizar pessoas que nunca tinham tido nada a ver com tal polícia. Esta táctica teve momentos grotescos no desgaste a que a esquerda radical submetia os seus ódios de cada momento, ficando como símbolo dessa fúria acusadora o caso do secretário de Estado da Informação do VI Governo Provisório, Ferreira da Cunha, acusado em Outubro de 1975 de ter integrado não apenas a PIDE mas sim uma super-PIDE.
Em resumo, e à excepção dos agentes da PIDE propriamente ditos, o critério para definir a ligação de alguém com a PIDE não foi a articulação mantida com essa polícia mas sim a subserviência que esse alguém no pós-25 de Abril manifestou perante a esquerda radical. Que esta táctica tenha tido particular sucesso nos chamados meios intelectuais não é de causar espanto. (Outra matéria interessante é a chantagem real ou imaginária exercida sobre várias pessoas, sobretudo militares, por aqueles que conheciam ou insinuavam conhecer o teor das informações que a PIDE recolhera sobre eles).
Resolvido o assunto PIDE passemos ao delfinato. Não sei donde vem a tese de José Oliveira Barata de que Vítor Aguiar e Silva era um dos delfins do regime. Ter sido deputado à Assembleia Nacional é manifestamente insuficiente e apesar de ser evidente que a realidade da política não fica atrás da ficção literária, não vejo como a excelência de Vítor Aguiar e Silva no ensino da Literatura o habilitaria para tal. Mas o que surpreende nesta tese (ou denúncia, como se lhe quiser chamar) é a desatenção por parte de José Oliveira Barata a outros e mais notórios delfins, como era o caso de alguém que se vai destacar nos episódios posteriores desta crise, o professor Teixeira Ribeiro. Ao professor Teixeira Ribeiro se deve o discurso mais inflamado da sessão que encerra a crise académica de 1969. Essa sessão, frequentemente esquecida quando se evoca esta crise, teve lugar já em 1970, não em Coimbra mas sim em Lisboa, mais propriamente no Palácio de Belém então como agora residência do presidente da República. Os oito estudantes que tinham sido alvo de processos crime por parte do ministério público na sequência do papel que tinham desempenhado na crise académica do ano anterior vieram a Belém acompanhados do seu reitor, de alguns professores e assistentes. O que os trouxe a essa audiência em Belém? Solicitar uma amnistia ao presidente da República, Américo Thomaz.
Note-se que na sequência dos acontecimentos de 69 em Coimbra, para lá de algumas dezenas de alunos terem deixado de beneficiar dos chamados adiamentos à incorporação militar, oito estudantes foram objecto de processos instaurados pelo ministério público.
E são estes oito estudantes que em Abril de 1970 vêm a Belém acompanhados pelo reitor e vários professores. Como é óbvio o reitor Gouveia Monteiro discursou. Fez uma intervenção breve, sem encómios nem arrebatamentos, em que expressa mais o desejo do que a esperança de que aquela audiência concorra para a normalização da vida universitária. Alberto Martins na qualidade de representante dos alunos, declarou diante do mesmo Américo Thomaz que lhe negara a palavra um ano antes, em Coimbra: “Os estudantes aqui presentes dirigem a Vossa Excelência as mais respeitosas saudações e ratificam com esta presença expressamente tudo o que os seus professores houveram por bem declarar sobre o seu caso.” Coube ao professor Teixeira Ribeiro, que falou em nome dos professores e assistentes que tinham solicitado aquela audiência, o discurso mais emotivo da sessão, referindo-se aos “incómodos morais” sofridos por Américo Thomaz aquando da inauguração do edifício das Matemáticas. Teixeira Ribeiro faz a intervenção mais colada ao poder que se ouviu naquela sala, isto se exceptuarmos a do próprio Américo Thomaz.
Em Agosto de 1975, talvez alguns dos presentes nesta audiência tenham recordado com estranheza as palavras que, em 1970, tinham escutado Teixeira Ribeiro dirigir a Américo Thomaz pois Teixeira Ribeiro que após o 25 de Abril passara a defender a revolução socialista ascende a vice-primeiro ministro de um governo presidido por Vasco Gonçalves.
Enfim, muito mais haveria para escrever mas o texto já vai longo e se tudo isto pode causar alguma estranheza, convenhamos que muito mais há para estranhar nas indignações retrospectivas deste nosso presente.
PS. A 17 de Abril de 1969 o Presidente da República, Américo Thomaz, inaugura em Coimbra o Edifício das Matemáticas da Faculdade de Ciências daquela cidade. Previamente a esta visita a direcção da Associação Académica de Coimbra (AAC) solicitara ao reitor autorização para um estudante falar durante a cerimónia. O pedido foi recusado. Contudo os alunos acorreram à cerimónia, concentrando-se dentro e fora do edifício com cartazes onde se lia “Democratização do ensino”, “Em Portugal há 40% de analfabetos”, “Exigimos diálogo”, “Estudantes no governo da universidade”. Durante a sessão solene é pedida a Américo Thomaz autorização para que fale Alberto Martins, um dos dirigentes estudantis presentes na sala. O Presidente da República cria uma situação ambígua ao responder “bem… bem… mas agora fala o senhor ministro das Obras Públicas”. Concentrados no exterior e ouvindo isto nos altifalantes os estudantes concluem que o seu colega e representante falará a seguir ao ministro das Obras Públicas. Tal não acontece pois a mesa da presidência deu a sessão imediatamente encerrada após a intervenção do ministro das Obras Públicas. Os estudantes protestam e vaiam a comitiva presidencial até esta abandonar a faculdade. A jornada transforma-se rapidamente em acção de protesto. Os estudantes concentram-se nas instalações da Associação Académica. À noite, quando saía da AAC, Alberto Martins foi preso. Seria posto em liberdade algumas horas depois após interrogatório. A universidade entra em seguida num processo de reivindicação de que fizeram parte o luto académico e a greve aos exames. Só no início do ano lectivo seguinte a universidade de Coimbra recuperaria, em parte, a normalidade.