Ainda o corpo de Odair Moniz não havia chegado à morgue e já as redes sociais serviam de antecâmara para o triste espetáculo que teria lugar nos dias seguintes na câmara da Assembleia da República. Uma tragédia pronta a ser explorada politicamente, onde não se procura o rigor dos factos, apenas incendiar paixões e ódios. Uma morte pronta a ser cavalgada por quem vive única e exclusivamente de terra queimada.
O pouco que realmente sabemos: sabemos que Odair Moniz fugiu de uma rusga e abalroou carros, que isto ocorreu num bairro onde armas e drogas abundam e o crime é uma realidade, não uma estatística — bairros que os bem-pensantes visitam apenas em peregrinações eleitorais. Sabemos ainda que Odair era negro e o agente que o abateu é branco, mas desconhecemos o que se passou ao certo: faltam-nos detalhes, os testemunhos são vagos e os julgamentos, por enquanto, incertos. Pergunta o leitor ponderado: foi o acto do polícia excessivo ou inevitável? Havia alternativa a deixar três filhos e uma mulher sem pai? O que o Odair fez justificou a sua morte?
Perguntas ponderadas que não têm lugar no palanque, lança-chamas retórico para partidos extremistas. O veredicto já foi tomado. O Chega aplaude o polícia como herói e propõe condecoração profilática. Solução para a criminalidade? “É disparar mais a matar”, brada o parlamentar. No outro extremo, distante na geometria parlamentar mas justaposto no radicalismo, o Bloco de Esquerda verte querosene na luta racial, conclui que se trata de mais uma vítima de racismo e abuso, que mais não são do que excrescências do capitalismo. Em cada evento um opressor e um oprimido.
Tocam ambos a mesma música fúnebre. O Chega alinha com o corporativismo e nacional-sindicalismo da Itália de 1920, patente na Carta de Carnaro, procurando cativar classes profissionais. O Bloco de Esquerda procura o seu George Floyd português, defunto a ser usado para expor a estrutural social que enreda e apouca, e cujo único auto de fé possível passa pela revolução redentora que vergará o racismo e, mais importante ainda para os próprios, o capitalismo.
Enfim. Estes dois inflamadores de paixões, de diferentes formas, cometem o mesmo pecado capital: ignoram o Homem enquanto agente, falível e singular, reduzindo-o a uma peça no quadro sociológico ora da opressão e do poder vigente, ora da decadência moderna e liberal. Para uns, porque o criminoso mais não é do que uma vítima da classe dominante, classe esta que usa o apparatus do Estado, a lei e as forças policiais, para assegurar a sua propriedade e para oprimir os restantes. Para outros, porque o criminoso é um produto da sociedade moderna decadente, e só a firmeza da autoridade e da disciplina do Estado, mesmo que a custo dos direitos individuais, pode reestabelecer a ordem colectiva.
Uma voz menos extremada, esquecida na algazarra, deverá propor três pontos de reflexão sobre o tema. Primeiro, que se evitem os discursos inflamados que apenas agravam o que já é grave e que despoletam ainda mais revolta social (assumindo que essa não é uma intenção deliberada, hipótese que não pode ser descartada). Segundo, que o Estado mantenha a ordem e a paz, defendendo as forças de autoridade, sim, mas nunca subjugando as liberdades individuais. Um Estado que ignora o cidadão trai-o, mas um Estado que ignora o crime trai todos os cidadãos. Em terceiro lugar, que o Estado acuda àqueles que nasceram num contexto difícil, dando-lhes a oportunidade e a esperança de escaparem à sua sina socioeconómica.
Parafraseando Ortega y Gasset, nós somos nós e as nossas circunstâncias – nem o crime é apenas resultado das estruturas existentes e da sociedade, nem é só opção do indivíduo. Há sempre opção, mas há que a facilitar.