Uma semana depois de surgidas as primeiras acusações a Boaventura Sousa Santos, sente-se um cheiro a esturro no ar. Como é que é possível que ainda não tenha aparecido a costumeira carta aberta de solidariedade para com o emérito sociólogo, subscrita pela habitual plêiade de académicos, artistas, activistas, intelectuais e boas pessoas em geral? Há, sem dúvida, uma nuvem de censura a pairar sobre este caso, despejando bátegas de cancelamentos sobre as publicações, inibindo-as de espalhar o apoio que Boaventura granjeou. Felizmente, o Observador não se deixa atemorizar e permite-me utilizar este espaço para a divulgação do texto que se segue:

“Somos uma plêiade de académicos, artistas, activistas, intelectuais e boas pessoas em geral preocupados com o ataque a que o Prof. Boaventura Sousa Santos está a ser sujeito. Não pretendemos entrar aqui na discussão sobre se BSS é culpado ou inocente de assédio sexual. Não que não tenhamos uma convicção sobre o que realmente se passou – temos e não é lisonjeira para as acusadoras – mas porque sabemos que, ao contestar, estaríamos a entrar no jogo do heteropatriarcado ocidental, que impõe à partida os termos do debate, dominando o campo semântico da contenda. Para já, conceitos como “culpa” e “inocência” pressupõem uma valorização do Eu-Pessoa acima do Eu-Comunidade, que muito jeito dão às estruturas de poder para manterem o jugo do eurocentrismo ao pescoço de quem se destaca e deve então ser disciplinado. Repudiamos a sujeição do homem-livre à ideia de justiça emanada do arquétipo ocidental que reputa como ilegítima, à partida, toda e qualquer prática vinda do Sul global.

É que, mais do que saber se Boaventura assediou, urge antes questionar: o que é o assédio sexual? Trata-se de uma construção social europeia, radicada na ideia mercantilista da propriedade do corpo, só possível numa sociedade terratenente que venera a propriedade acima de qualquer valor e se habituou a vociferar, sem reflectir, o estribilho vaginocapitalista “o corpo é meu”. Um périplo pelas culturas periféricas é suficiente para perceber que a colectivização é a norma nas sociedades pré e pós coloniais. É nesse espaço de partilha onde o Prof. Boaventura se move e onde as delatoras também se moviam, até serem ocidentalizadas e internalizarem o egoísmo corporal que as leva a gritar “tire a sua mão da minha perna!”, paradigma da valorização do “sua” e “minha” em vez do “nossa”. A suposta qualidade universal dos valores relacionados com o sexo é a continuação da “missão civilizadora” que serviu, desde o início da expansão do Velho Mundo, para dominar as populações nativas, consideradas selvagens, bárbaras, primitivas. Boaventura é um herege do culto que é o Ocidente. E bem, dizemos nós.

O Prof. Sousa Santos é criticado por convidar mulheres para sua casa, uma crítica risível e ignorante, de quem desconhece a arreigada tradição de hospitalidade dos povos aborígenes, para quem o franquear de portas é, não mera cortesia, mas um dever cuja negação atrai a ira dos deuses, de Chalchiutotolin a Nkosi, passando por Ganesha e Álvaro. A nossa civilização doente, das trancas e dos alarmes, que encarcera os corpos no calabouço simbólico do condomínio, é que olha com desconfiança e horror o convite para partilharmos a almofada, o sofá ou o leito. Por alguma razão, no Ocidente, chamamos ao nosso lar “apartamento”, pois é de apartar que falamos, apartar do outro, diferente de nós.

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Paradigmática da imposição de um sistema de valores europeu é a reprovação do estado de embriaguez do Professor, típica de uma sociedade que se esforça por dominar o indivíduo, cerceando o contacto com a sua consciência espiritual, a que só acedemos através de libações. Daí a valorização cristã da abstinência, que mais não é que uma opressão sobre a liberdade e a libertação proporcionada pela exploração xamânica dos sentidos. A temperança é uma coleira.

Constatamos também que, à medida que vão surgindo novas denúncias – decerto encorajadas pela auto-sugestão de quem deseja a exposição mediática que o Ocidente recompensa como sucedâneo de amor-próprio – o clamor da perseguição cresce, provando que é também a discriminação racial que está por trás deste teatro. 4 é mais do que 3? 5 é mais que 4? Talvez. Mas isso confere peso apenas a quem se verga perante as regras da Matemática, uma ciência branca que oprime outras formas de saber igualmente válidas, senão mais. O que interessa o número de mulheres que se queixam de Boaventura? A soma é mera opinião. A aritmética não vê essências.

Obviamente, a sanha contabilística é empolada pela comunicação social. Haverá actividade mais subliminarmente racista que a imprensa? A página branca, dominadora, arrancando significados de caracteres negros que são dispostos ao molho, alheios à sua vontade. Uma página branca apenas contém em si milhares de caracteres negros, como uma penitenciária simbólica.

Merece também nota a referência a extrativismo intelectual neste caso. Não o negamos, está presente nas interacções descritas. Mas no sentido inverso ao que é relatado: é a Boaventura que é arrancado o vasto conhecimento por parte das suas discípulas que, interesseiramente, se negam a reciprocar. O que é particularmente grave se pensarmos que muitas delas são oriundas de sociedades pré-colombianas em que a prática de troca de presentes é uma tradição honrada. No entanto, como o uso de calças de ganga e do Skype atesta, são indígenas já irremediavelmente ocidentalizadas, que praticam agora, sobre Boaventura, o que o colonialismo lhes ensinou: extrair, extrair, extrair e não dar nada de volta. Aliado a este extrativismo, encontramos outra das piores características da nossa sociedade, o idadismo, com a sua falta de respeito pelo contributo que os mais velhos ainda podem dar, abandonando-os quando já não têm valor. O ancião, tão valorizado na tribo, é um pária na cidade. Isto dava para vinte ou trinta monografias etnográficas.

Estará Boaventura isento de crítica? É óbvio que não. Uma leitura, ainda que superficial, das queixas que vão surgindo permite-nos verificar que as mulheres de quem aceita atenção são as de pele mais brancas. Mesmo as indígenas são sempre ou de etnias claras, ou de origem miscigenada. Onde estão as peles castanhas? Onde está a interseccionalidade? Onde está a socióloga massai cega? A doutoranda maubere coxa? A investigadora pashtun lésbica? A antropóloga inuíte transgénero? Boaventura tem de trabalhar no âmbito da inclusão. Porém, não é mácula que justifique o que lhe está a acontecer.

Não podemos terminar sem apontar a coincidência entre o surgimento desta campanha e a visita de Lula da Silva. Quando Lula se prepara para discursar em Portugal, aproveitando o palco para denunciar o apoio europeu à agressão ucraniana à Rússia, interessa enlamear o nome de um dos mais notáveis apoiantes de Lula. Aliás, o paralelo entre a Ucrânia e as acusadoras de Boaventura é evidente. São agentes provocadoras ao serviço do imperialismo americano, que inventam histórias de ocupação indevida onde existe apenas auto-defesa.

Assistimos, neste caso, a uma terrível e injusta assimetria de poder: uma coisa é Boaventura a tentar deitar uma aluna, outra é todo um país a querer derrubar Boaventura. Não em nosso nome.”