Quase dois meses depois da primeira acusação de assédio, o Prof. Boaventura Sousa Santos reagiu publicamente através de um artigo que enviou ao Expresso. Ou seja, mesmo antes de ser lida, a sua defesa começa mal. Para já, ao esperar tanto tempo até avançar, BSS mostra o mesmo tipo de paciência predadora de que as suas acusadoras se queixam. Vê-se que está habituado a aguardar pelo momento certo de saltar em cima. Como um tigre, se em vez de garras tivesse bolsas de estudo para distribuir.

Depois, ao escolher o Expresso, esse símbolo do jornalismo corporativo, BSS está a contribuir para o enriquecimento do militante número um do maior partido da direita portuguesa, um pecado ainda maior do que apalpar estudantes nativas. Não havia um boletim de sociologia que publicasse isto? Um almanaque bimensal da alterglobalização? Uma daquelas cooperativas com um site onde chamam fascista a toda a gente?

A sorte de Boaventura é que, se a sua estratégia é pobre, a escrita é riquíssima. Mais uma vez, BSS safa-se pela sua verve. É pena que nem todos sejam versados no jargão académico das ciências socias, caso contrário poderiam apreciar a genial retórica de Boaventura. Para ajudar os leitores menos habituados a decifrar a linguagem hermética usada pelas luminárias da sociologia, resolvi traduzir alguns dos excertos mais representativos do artigo “Uma reflexão autocrítica: um compromisso para o futuro”.

Ao longo de toda a minha vida pessoal e profissional, ao lado da minha actividade como intelectual, professor e activista, sempre tenho defendido os direitos humanos, sobretudo os direitos das mulheres, dos povos indígenas e das minorias mais desfavorecidas no contexto social, cultural, económico ou qualquer outro.

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Sempre gostei muito de mulheres, principalmente mulheres de cor. E pobres. Não sei porquê, mexem comigo. Quer no trabalho, quer na vida privada, penso muito nelas. Sempre me vi como uma espécie de escudo, tendo-as aconchegadas debaixo de mim, bem protegidas. Comigo por cima, elas estão resguardadas.

O fenómeno do machismo, enquanto problema social e interpessoal com profundas raízes no nosso espaço cultural, afecta-nos a todos nós nas nossas relações humanas, em particular quanto mais distantes nos colocamos dos tempos de hoje, em que a sensibilização é maior, mesmo que ainda insuficiente.

Isto do machismo também me afecta a mim, atenção! Julgam que é fácil estar sempre com vontade de pinar? Mais: sentir que tenho obrigação de o fazer? É muito aborrecido. Eu é que devia fazer queixa destas provocadoras, que não percebem isto por serem novas. Tão novinhas que são.

Nascido em 1940, sou de uma geração em que comportamentos inapropriados, se não mesmo machistas, quer se trate da convivência ou da linguagem, eram aceites pela sociedade.

É preciso perceber que eu tenho 83 anos, pá. 83 anos. No mundial de 1966 eu já guiava! Às vezes, se um tipo da minha idade apalpa uma miúda, pode ser só porque está a tremer, já pensaram nisso? E se parece que me estou a babar, se calhar é porque me estou mesmo a babar. Tenho os dentes todos lixados, há aqui fugas de cuspo que não controlo.

Não é sempre fácil perceber conscientemente que se está a ter comportamentos que antigamente não eram vistos como inapropriados. Não se trata de justificar comportamentos passados, apenas de verificar algo que pode acontecer e redundar em acções pouco construtivas.

No meu tempo, solicitar um linguadão em troca de um favor profissional era não só aceite como encorajado. Quem não fizesse isso não era um bom chefe. As raparigas até ficavam chateadas por acharem que não tínhamos interesse nelas.

Mesmo para mim, que já escrevi 43 livros e 227 artigos sobre todos os tipos de opressão e abuso de poder, é difícil perceber conscientemente que agora não é de bom tom enfiar a língua na garganta de uma aluna. Imagine-se para alguém menos virtuoso.

Não quero com isto justificar os meus comportamentos, mas a verdade é que são justificados. O que acontece é que as gajas andam todas descascadas e as acções são pouco construtivas. Embora, tem graça, incorporem muitos elementos da construção civil, nomeadamente o palavreado.

Reconheço que em determinados momentos posso ter sido protagonista de alguns desses comportamentos. Nessa medida, lamento que algumas pessoas possam ter sofrido ou sentido desconforto e por isso lhes devo uma retratação.

Eh, pá, é possível que até possa ter protagonizado alguns desses comportamentos. Não me lembro. Já vos disse que sou velho? Além disso, costumo estar bêbado. Olha, outra coisa que no meu tempo era normal, mas que estes putos já não fazem. É raro que um dos meus discípulos consiga beber mais do que duas ou três daquelas cidras amaricadas. E só de 15 em 15 dias, para não afectar o jejum intermitente. Rotos.

Mas, se houve desconforto, lamento. Embora eu também me tenha sentido desconfortável. Não tanto na própria noite, mas no dia seguinte. É que tenho ressacas cada vez piores. Estou mesmo velho, chiça.

Este meu reconhecimento de modo algum implica que eu assuma a prática de actos graves que me têm vindo a ser imputados e não deixarei nunca de defender a dignidade e a integridade que fui construindo ao longo de mais de 50 anos de esforço e dedicação.

Agora, apesar de não me lembrar do que fiz, tenho a certeza de que não fiz o que elas dizem que fiz. E não vou deixar que as memórias destas aldrabonas me estraguem a reputação. A minha reputação é sagrada. É, aliás, o que uso para engatar aldrabonas.

Neste contexto, não poderei eu senão continuar a dedicar todos os meus esforços, para aprofundar a promoção de uma cultura institucional e interpessoal de prevenção, detecção, condenação e eliminação de comportamentos machistas nas suas mais diversas manifestações.

Vou passar a ter mais cuidado quando me meter com uma tipa.

Enquanto a cultura feminista não estiver plenamente consolidada, deve ter-se presente que, na esmagadora maioria dos casos, as mulheres não têm encontrado instrumentos institucionais e comunicacionais adequados para apresentar as suas queixas, ver reconhecido o seu sofrimento injusto e obter a reparação que for considerada adequada.

Eu quero muito que as mulheres encontrem o meu instrumento comunicacional, mas elas também têm de fazer um esforço. Não posso ser só eu.

Devemos estar sempre vigilantes, uma vez que a violência contra as mulheres pode manifestar-se de múltiplas formas, pelo que é necessário prosseguir no estudo aprofundado do fenómeno, dos factores que o promovem, dos impactos e das acções para os erradicar.

Andam para aí uns tipos mesmo bera. Ah, se eu os apanho!

Os casos particularmente graves de violência sexista devem ser rigorosamente identificados e eficazmente punidos pela justiça criminal, com pleno respeito pelo direito de defesa e demais princípios da justiça democrática; os casos menos graves devem ser tratados segundo os princípios da justiça restaurativa que envolvam reconhecimento do sofrimento injusto, iniciativas conjuntas (intermediadas ou não por terceiras partes) de cuidado e de cura. O importante é que da avaliação e decisão de todos os casos a cultura feminista saia reforçada e não enfraquecida.

Os casos graves, como uma violação seguida de homicídio, sim senhor, castiguem-se. Agora, eu só tentei mexer no, digamos, cocar duma índia. Devia bastar um pedido de desculpas. Sou a favor da justiça restaurativa: resolve-se isto num restaurante. Uma boa refeição, duas garrafas de vinho e, bem falado, come-se a sobremesa em minha casa.

Como em todos os processos interpessoais há complexidade e excepções, devem ser evitados processos de linchamento e de cancelamento, garantindo os direitos amplamente reconhecidos da justiça democrática.

Quando, numa situação de assédio, há duas pessoas e eu sou uma delas, abre-se uma excepção. Parece-me óbvio.

Sempre defendi que, pelo facto de os modos de dominação moderna principais serem, além do heteropatriarcado, o capitalismo e o colonialismo (racialização dos corpos e das culturas ou de práticas que se desviam da cultura eurocêntrica dominante), deve procurar-se uma articulação entre a cultura e as lutas feministas, por um lado, e a cultura e as lutas anticapitalistas e anticolonialistas, por outro.

Não nos vamos distrair da luta! Concentremo-nos no heteropatriarcado, no capitalismo e no colonialismo e não percamos tempo e energia com o caso de um homem branco cis hétero que se aproveita da sua posição hierárquica para abusar de uma mulher do sul global.

Se em algum momento não estive à altura do cumprimento e difusão destes princípios ou não fiz tudo o que devia, essa omissão só reforça o meu compromisso de agora, mais do que nunca, os promover e defender.

Parecia mesmo que ia apresentar um pedido de desculpas, não parecia? “Se em algum momento…” Não contem com isso. Eu tenho estado bem, mas faço votos de vir a estar ainda melhor.

O meu compromisso futuro é o de ser cada vez mais vigilante de forma a evitar protagonizar ou contribuir, mesmo que involuntariamente, para situações que possam gerar mal-estar ou opressão em qualquer eixo de dominação, com especial atenção ao heteropatriarcado. Não se trata de um compromisso novo, mas antes da sua consolidação através de um processo de maturação e aprendizagem que acentua o dever de ser sociólogo da minha circunstância e de ler o mundo através dos instrumentos de que dispomos em 2023.

Resumindo: não fiz nada e, se o fiz, foi sem querer. Vou continuar a fazer o que sempre fiz, mas com cautela, porque em 2023 há redes sociais.