«No início da aula (…), o aluno (….) estava sentado com a perna estendida em cima da mesa, boné na cabeça e a comer. Solicitei-lhe várias vezes que retirasse o boné e quando cedeu ordenei que se sentasse [na cadeira]. Em vez de acatar esse pedido (foi esse o meu tom), o aluno dirigiu-se ao caixote do lixo onde deitou qualquer coisa e, no regresso ao seu lugar, atirou com violência um objeto (não me apercebi o que era) que passou muito perto de uma colega sua (…) que estava sentada no lado oposto da sala, e embateu na parede. Quando o aluno (…) se sentou, e sempre com um sorriso provocatório, solicitei que abandonasse a sala, ainda num tom cordial. Resistiu repetidas vezes a cumprir a ordem, ora alegando que não tinha feito nada, ora que se ia portar bem, não havia problema algum, estava tudo bem. Perante a minha inflexibilidade, sempre mantendo uma postura e tom de voz provocatórios como se nada de anormal tivesse acontecido, o aluno saiu da sala. Estava ainda na fase inicial da aula, creio que a ditar o sumário, e três alunos atrasados bateram à porta pedindo licença para entrar, o que autorizei. A seguir ao terceiro aluno, sem mudar de atitude, o aluno (…) tentou forçar a reentrada na sala de aula de onde acabava de ser expulso. Fui forçado a interromper o que fazia para insistir que saísse, o que o aluno fez. Com a aula iniciada e com a turma em silêncio, cerca de cinco minutos volvidos, sem qualquer pedido de licença, o aluno (…) simplesmente escancarou a porta da sala e disse em voz alta a um aluno que estava no fundo da sala (…) que lhe emprestasse a bola. Com a paciência no limite, ‘bati-lhe com a porta na cara’. Do lado de fora, o aluno (…) foi falando em voz alta no corredor, mas não prestei atenção e prossegui a aula. Volvidos alguns minutos, alguém escancarou violentamente a porta da sala e, quando fui fechá-la, a pessoa tinha desaparecido. Não é difícil deduzir quem foi. O resto da aula foi tranquilo.
Na aula seguinte, (…) preparei os meus materiais didáticos em poucos minutos e, ao levantar a cabeça, reparei que o aluno (…) estava sentado no seu lugar de capuz e boné. Solicitei-lhe cordialmente que saísse da sala e que não tinha condições para trabalhar mais com ele. Como estava a expulsá-lo simplesmente do convívio comigo em nome da minha sanidade mental, disse-lhe para sair tranquilamente. Se não concordasse com a minha decisão, poderia apresentar queixa por escrito contra mim ao seu Diretor de Turma, à Direção da Escola e ao Ministério da Educação que eu responderia no tempo e locais próprios. O aluno perguntou-me uma dezena de vezes por que razões o estava a expulsar da aula se não tinha feito nada. Disse-lhe que o Professor é a autoridade na sala de aula e, com ou sem razões, se ordena a um aluno para abandonar a sala este deve obedecer e, se discordar, depois o assunto resolve-se por via administrativa. Ele foi sempre respondendo que não ia sair da sala. Daí em diante a irritação mútua escalou. Perguntei-lhe se iria sair a bem ou a mal. Ele disse-me que só saía se viesse alguém da Direção da Escola. Insisti que ele tinha de sair. Foi quando me aproximei fisicamente do aluno (…) [que] estava sentado e, em vez de pegar na mochila e sair, procedeu de modo inverso. Retirou o estojo da mochila, o caderno já estava em cima da mesa, depois retirou a caneta do estojo e abriu o caderno para assistir à aula como quem quisesse escrever o sumário. Nesse momento, juntei os materiais do aluno e joguei tudo pela porta fora (tinha deixado a porta da sala aberta). De seguida, peguei no aluno pelo braço e empurrei-o até à porta da sala onde continuava a resistir. Numa ameaça de ‘porrada’ mútua, disse-lhe se quisesse isso seria fora da Escola, ali bem ou mal ele teria de sair depois resolvíamos o assunto por via administrativa. Isto com a restante turma a assistir paralisada, sem que os alunos falassem ou abandonassem os lugares. Quando estávamos perto da porta, e o aluno ainda resistia, ele empurrou-me de encontro a uma mesa, o que me fez retirar os óculos decidido que estava a levar até ao fim a minha intenção, fosse como fosse. Entretanto apareceu uma funcionária e alguns alunos intervieram impedindo que nos reaproximássemos um do outro. Do meu lado, continuei a insistir que o aluno tinha de abandonar a sala porque quem dava ordens ali era eu. Apenas nesse momento a minha ordem foi acatada. Passados estes cerca de dez minutos iniciais, não me pareceu que houvesse alguém traumatizado ou qualquer descontrolo, antes seguro e aliviado para poder trabalhar com tranquilidade porque a autoridade foi exercida. Aconteceu uma aula absolutamente habitual, sem qualquer incidente.»
Relato da anomia social que insistimos ignorar por não nos predispormos a buscar e a assumir respostas para a falência de valores morais e de figuras de referência que, no quotidiano das instituições, orientam as atitudes e os comportamentos dos indivíduos. O episódio retrata situações tornadas corriqueiras que, por norma, envolvem figuras nucleares de regulação das sociedades, como professores e polícias, cada vez mais humilhados, desumanizados na sua honra, mentalmente exaustos, sem força para o murro na mesa que se impõe.
Imagine-se a cabeça de cada um de nós como uma encenação representada por três personagens, um sujeito equilibrado obrigado a dirigir e a arrumar a casa (ego), um crápula sempre predisposto para o pior (id) e um santo potencial mártir da sua imaculada bondade (superego). Foi nesse sentido que Freud retratou o nosso aparelho psíquico, uma instância dirigida pelo ego (o eu consciente de cada sujeito, o que o indivíduo exterioriza) cuja função é a de reconhecer e harmonizar as pressões psíquicas permanentes exercidas pelos dois restantes opostos, o id (os impulsos instintivos, o inferno) e o superego (a autoconsciência moral, o céu).
Depois, Freud sobrepôs esse equilíbrio da psique individual ao papel exercido, nas sociedades, por uma entidade com contornos precisos que designou por civilização. Sem a presença de um ideal de civilização que as pessoas comuns reconheçam e valorizem como tal no seu dia-a-dia, a regulação das sociedades torna-se difícil e, no limite, inviável. Esse ideal corresponde ao superego social, a consciência moral coletiva cuja missão é a de bloquear a invasão da vida quotidiana pelos instintos primários inerentes à espécie humana sempre predispostos a provocar desordem, violência, falta de civismo, desrespeito por regras, os mais variados atropelos.
Logo, as civilizações existem na medida em que recalquem com eficácia os instintos primários e, sendo humanamente impossível e indesejável suprimi-los, a capacidade civilizadora de um sistema social equivale ao seu poder de desenvolver sistemas de regulação de atitudes e de comportamentos que direcionem os interesses dos indivíduos para práticas de sublimação em nome de ideais coletivos que sustentem a tranquilidade e a prosperidade. Quer dizer que a ideia de civilização apenas fará sentido se gerar pressões sociais eficazes para que os indivíduos invistam os seus instintos primários na beleza, na limpeza, na ordem e em atividades intelectuais superiores (artes, ciências, música, escrita, entre outras). Tão taxativamente freudiano quanto ocidental, numa caracterização feita pelo psicanalista em 1930.
No entanto, vai longa a caminhada em sentido contrário rumo ao ideal multicultural, a ortodoxia antiocidental consolidada após a Segunda Guerra Mundial que passou a relativizar tudo, o que inviabiliza o princípio do superego social. Tal transformação fomenta a libertação dos instintos primários da espécie propiciadores de estádios de anomia institucional e social, o que torna a mente coletiva amoral na sua loucura.
Nessa caminhada, o ideal multicultural escorraçou o ideal de civilização da intimidade das salas de aula justamente onde se processa, por excelência, a socialização dos indivíduos em tempos de escolarização massificada. É aí onde crianças, adolescentes e jovens passam cada vez mais anos das suas vidas. Quando o espírito da selva toma conta de um espaço institucional nuclear de regulação de atitudes e comportamentos é quase impossível as demais instituições escaparem ao contágio, o que torna os polícias (no ponto de chegada sintomático em certos territórios suburbanos), tal como os professores (no ponto de partida, as incubadoras salas de aula), particularmente expostos à selva mental e social que se adensa.
Será tão difícil compreender o desastre social do abandono da ideia de civilização, e de civilização ocidental, como Freud a caracterizou?
Autor de Um século de escombros – Pensar o futuro com os valores morais da Direita.