“A verdadeira chatice, convém lembrar, é um exercício mediante o qual um autor, depois de ter levado muito tempo (e de se ter chateado muito) para chegar às suas conclusões, faz com que o leitor (ou espectador) possa partilhar esse intenso sofrimento, chateando-o profundamente (porque não há outra maneira senão profundamente). Em vez de lhe dar logo as conclusões, com meia dúzia de aforismos citáveis (não queriam mais nada!), segue todo o interminável percurso do raciocínio ou da criação — e é assim que deve ser.”
Assim defendia Miguel Esteves Cardoso (MEC), na década de 80, a “cultura chata” (a “exigente”) em detrimento de uma crescente “cultura vivaça” (a do “gozo lúdico”, a dos “happening[s] com montes de piada”). Imaginemos, até ao fim deste artigo, que aquele excerto é sobre política e não sobre cultura (não sei se MEC achará pertinente esta momentânea substituição concetual) e talvez tenhamos um bom ponto de partida para pensar na política dos dias que correm — e, em particular, neste período pré-eleitoral.
É que a propensão é de ignorar a “chatice” dos programas eleitorais (e respetivo substrato teórico-empírico) e produzir/consumir os tais “aforismos citáveis”, isto é, soundbites. Enfim, não é surpreendente reconhecer que politicamente vivemos em polarização, populismo e simplificação, num limbo entre malfeitoria, estupidez e ingenuidade.
Estes debates das legislativas são sintomáticos da política não “chata”, isto é, que serve para não chatear o espetador (ironicamente porque os dois intervenientes, com frequência, se chateiam). São encontros, como se diz muito em politiquês, de “poucochinho” (em duração, logo também em desenvolvimento de ideias). Há quem diga que isso leva a que (alguns) sejam autênticos combates. E faz sentido que o sejam: depois de 300 mil pessoas terem visto em direto um pugilista a desfigurar o rosto de um youtuber (Numeiro) no final do ano passado, nada melhor do que começar 2024 a explorar o mercado mediático do boxe. O público aprecia (as audiências têm sido boas). Os juízes avaliam (o momento das pontuações é dos mais aguardados). E as claques twitteiras mandam cacetadas umas às outras (se calho de não ver um duelo, fico a par dos knockouts dos candidatos na minha timeline). Tenho-me escusado ao uso do TikTok, mas é uma solução fácil para quem não assiste em direto (ou para quem quer rever), já que em meia dúzia de swipes está o debate visto (servido em cortes custa menos do que recorrer à íntegra disponível na RTP Play; se estes tiverem instrumental por trás, melhor ainda).
É notório também que, em período de campanha, como fora dele, até o conteúdo mais inócuo é passível de se tornar viral: nas últimas legislativas, o gato Zé Albino (de Rio) foi uma popstar. Em certa medida, o jogo comunicacional incumbe os líderes partidários do papel de agentes de entretenimento. Mais do que meros proponentes de um programa para o país, espera-se, consoante o contexto, que mostrem a sua faceta mais bem-disposta (como nas habituais entrevistas eleitorais de Ricardo Araújo Pereira) e o seu lado mais sentimental (em entrevistas de foro pessoal).
Sim, a tendência é mais para o show e o transitório do que para o conteúdo e a profundidade, mas honestamente sinto que ainda não atingimos todo o potencial da “política vivaça”. Não sei qual será o diagnóstico de MEC, mas diria que faltam dois requisitos para a plena espetacularização da política, que vou enunciar. Isso significa que os defensores da “política vivaça” podem estar esperançosos, mas também, ao mesmo tempo, que os preconizadores da “política chata” ainda podem tentar evitar males maiores.
Em primeiro lugar, esqueçamos o atual modelo de fact-checking dos meios de comunicação social. Instemos os media ao regresso da Fátima Lopes inquiridora acompanhada por aquele senhor espanhol que liga convidados a um aparelho. Depois d’A tarde é sua com questões como “Roubou as azeitonas ao seu tio?” ou “Magoa-a que alguns amigos e familiares duvidem que tenha visto ovnis?”, esta máquina está mais do que capacitada para atestar a verdade e a mentira de líderes partidários em temáticas como os salários, o sistema de pensões e o SNS. (Depois de escrever isto, escarafunchei o X para averiguar a originalidade deste repto e descobri que o Diogo Faro já sugeriu isto em 2021. Folgo em saber que a ideia tem adesão junto de tão consensual influencer político.)
Depois só fica a faltar uma coisa. E faço minhas as palavras de @RuiHCruz, no X, em 2022: “Via um Big Brother Legislativas. Fechavam-se os candidatos todos numa casa e imos [íamos] mandando desafios todas as semanas, tipo preencher um recibo verde ou aquela cena do ringlight. Depois eliminávamos um por semana no 760 até ficar só o primeiro ministro. De nada, Cristina.”
Quanto a esta proposta, deixo a critério posterior se abrange também os partidos sem assento na Assembleia da República. Se for esse o caso, tenha-se desde já em conta que o cabeça de lista do RIR no Porto, Tino de Rans, parte em clara vantagem, visto que a Quinta das Celebridades e o Big Brother VIP lhe deram uma estaleca que lhe garante, se não um cargo ministerial, no mínimo, um grupo parlamentar.
(Caso pareça que estou a favor da excentricidade e não da “chatice”, resguardo-me de incriminações invocando carga satírica.)