Apesar de já ter relevado que não gosta que o questionem constantemente sobre se pretende ser candidato à Presidência da República em 2026, o almirante Henrique Gouveia e Melo não fecha a porta a essa possibilidade. E a verdade é que as diferentes sondagens até agora realizadas mostram que recai sobre si uma preferência dos eleitores: as da Intercampus (em julho e novembro) e a do ISCTE (em setembro).

Como é que isto se pode compreender?

Para responder, proponho que recorramos à tipologia da dominação do sociólogo clássico Max Weber. O autor remete o conceito de dominação para o estabelecimento de uma relação social em que um determinado indivíduo não só detém a possibilidade de exercer poder sobre outros, como tal é legitimado pela aceitação destes. A legitimidade do domínio pode ser de tipo legal, tradicional ou carismática.

No decorrer do seu papel enquanto coordenador do plano nacional de vacinação contra a Covid-19, perspetivo Gouveia e Melo como uma figura de autoridade carismática. Mas vamos por partes.

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O que é carisma? Weber define-o como “uma certa qualidade que caracteriza uma personagem individual, e em virtude da qual esse personagem é considerado extraordinário e tratado como se fosse dotado de poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanas ou, pelo menos, excepcionais” (Weber, 1968, cit. por Giddens, 2005).

Tem carisma, portanto, quem é considerado extraordinário ou quem se considera que fez coisas extraordinárias. Ora, não está aqui em causa o facto de Gouveia e Melo ter desempenhado eximiamente as suas funções enquanto líder do processo de vacinação na pandemia, mas sim o reconhecimento de que o fez – que se generalizou na sociedade e na comunicação social.

Assim, em virtude deste reconhecimento social, a liderança da task force transfigurou-se numa liderança carismática de âmbito nacional por parte do almirante, o que implicou que, na altura, passasse a deter uma influência social considerável, a qual, a olhar para as sondagens das presidenciais, se mantém em boa parte.

Por definição, o líder carismático, segundo Weber, “desafia os costumes estabelecidos pela expressão de seus “milagres”” (Laureano, 2020). Ora, em consonância com essa premissa estão todas as metas de vacinação que Gouveia e Melo conseguiu cumprir (antes dos seus prazos), associadas a uma coordenação executiva e logística bem ordenada e orientada, assim como comunicada publicamente por si com clareza. Foram feitos merecedores do louvor dos portugueses, principalmente dado o caráter de aparente ineditismo de tamanhas proezas num quadro em que estes estão tão habituados às trapalhadas e aos esquemas sub-reptícios existentes na classe política.

Além disso, os períodos atípicos e/ou de “crises sociais”, como foi o tempo pandémico, constituem “as condições ideais para a conformação de uma liderança dessa natureza“, porque não só são um palco único para a intervenção de uma figura que tem um maior destaque do que poderia ter noutros momentos, como também “geram condições latentes de inclinação social à crença na salvação e o líder carismático será aquele que melhor conseguir se apresentar como solução para o problema e for reconhecido como tal” (Laureano, 2020).

Note-se, porém, que o tipo de liderança carismática é o mais “instável”, uma vez que tende a necessitar da continuada apresentação de “provas” novas de ações do líder que sejam consideradas extraordinárias pelas pessoas que o tomam como tal, pelo que, quando isso não acontece, é possível a efemeridade da sua influência (Laureano, 2020). No entanto, penso que a exposição com alguma frequência que a personalidade Gouveia e Melo ainda vai tendo nos meios de comunicação social, desde o seu trabalho na pandemia, pode evitar até certa medida que a força do seu impacto se esbata tanto com o passar do tempo – mais especificamente, entre o período de setembro de 2021 (quando a sua missão na task force terminou) e o início de 2026 (altura das eleições presidenciais).

Ainda assim, é expectável que se verique uma visibilidade insuficiente, na sociedade civil, de novas realizações suas (que não são, assim, objetos passíveis de admiração social generalizada). Esse motivo e não contar, presumo eu, com apoios partidários significativos dificultam, caso venha realmente a candidatar-se, as hipóteses de vitória de Gouveia e Melo.

Por outro lado, a Psicologia sabe que a dimensão emocional e a intensidade de uma experiência pesam na memória dela. No início de 2026, quão presentes na memória os portugueses terão as vivências pandémicas e o papel do almirante? Se a resposta for “muito”, quanto isso pesará no voto? Muita água vai correr debaixo da ponte até lá, em termos quer económico-sociais, quer político-partidários…

Para terminar, e num aparte, podemos dizer que foi também o domínio carismático de Marcelo Rebelo de Sousa que, em boa medida, o levou até Belém em 2016, estando o seu carisma associado ao enorme destaque mediático que construiu, ao longo de anos, como “o” comentador e “o” professor.

Referências:

Giddens, A. (2005). Capitalismo e moderna teoria social. Lisboa: Presença.

Laureano, R. (2020)1. A dominação carismática em regimes democráticos. Política & Sociedade, 19(45), 178-204. (Sob a licença CC BY https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode ).