Durante algumas décadas a expressão “política industrial” esteve fechada numa gaveta. A estagnação económica dos anos 1970, as políticas liberalizadoras de Thatcher e Reagan nos anos 1980, com a privatização de inúmeras empresas públicas e o corte de ligações “perigosas” entre políticos e empresas, constituíram uma vacina contra o reforço do papel do Estado na actividade empresarial.

Apesar disso, a política industrial esteve sempre presente nos últimos trinta anos, apenas não sendo referida com esse nome. Os exemplos são muitos e mais visíveis nos sectores ditos de rede, como energia, telecomunicações, banca ou transportes. Mas também a outros níveis, como o comprovam os 3.000 clusters nacionais existentes na Europa, em que o Estado acrescenta frequentemente aos subsídios que oferece o papel de “pivot” nas relações entre empresas, centros tecnológicos, entidades formadoras, universidades ou laboratórios.

Em Portugal, a definição de uma estratégia de base económica nos anos 1990 consistiu na internacionalização no triângulo Europa-África-Brasil, juntando a integração europeia e as ligações com Espanha ao retomar das relações com os PALOP. A aposta surgiu em reacção à estratégia castelhana de investir em Portugal e nos países de língua espanhola, mas os resultados não foram os esperados, como se viu pelos mais de 20 anos de prejuízos acumulados pela Caixa Geral de Depósitos. Casos como a Portugal Telecom tiveram algum sucesso inicial mas depressa foram condicionados por interferência política.

A entrada da China nos mercados internacionais mudou esta perspetiva. A China veio trazer um novo modelo de Socialismo que mantêm a sua essência antiliberal e antidemocrática, mas que, ao usar o mercado, reconhece implicitamente a superioridade do Capitalismo.

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O modelo alternativo ao Liberalismo que os chineses começaram a implementar com Deng Xiaoping, e que agora estão a tentar alargar a países menos desenvolvidos de Ásia, África e América Latina, constituiu uma oportunidade para os críticos do Capitalismo “reactivarem” as políticas intervencionistas, em que o Estado actua como o motor da vida económica.

Quando a face mais obscura deste modelo vem ao de cima, os defensores de políticas intervencionistas chamam-lhe “capitalismo de Estado”, focando-se na sua “máscara” de economia de mercado e escondendo toda a sua influência marxista. Isto acontece com a mão-de-obra escravizada que os chineses usam nas obras públicas que financiam em vários países e que dorme em barcos, em condições sem o mínimo de dignidade, ou agora com o caso Isabel dos Santos.

Quando a face aparenta ser mais brilhante, como a que se popularizou acerca do domínio chinês sobre as redes de internet móvel 5G, os mesmos defensores usam-na como um exemplo para o que deve ser uma política industrial comandada pelo Estado. Quando este exemplo não é suficiente, usam ainda o caso dos EUA e dos contratos militares no âmbito da política de defesa.

Os europeus sempre foram muito influenciados por esta retórica. Na Guerra Fria, porque estavam entre dois “fogos” sempre foi popular a equidistância, apesar de estarem em confronto a democracia capitalista e o totalitarismo marxista. Hoje, pela ideia enraizada de que existe um modelo social europeu especial e único.

A União Europeia começou recentemente, com Juncker apoiado pelos franceses, a apostar numa estratégia de política industrial renovada, onde cabem todos as expressões do momento, desde as “tecnologias inteligentes” e a robótica, até à economia circular, a crescente digitalização e a transição para uma economia “hipocarbónica”, tudo misturado num mercado único com “justiça social e inclusivo”.

Uma das dimensões menos publicitada desta política industrial, porque “escondida” nas reuniões de Bruxelas, decorre dos chamados Projectos Europeus de Interesse Comum (PEIC), comandados pela Comissão Europeia (CE) mas que envolvem os países para que a sua liderança seja legitimada.

Em termos legais, a política industrial é da responsabilidade dos países e a CE apenas tem competências de apoio, em complemento às políticas nacionais. Mas como a definição de PEIC é suficientemente ambígua para abranger tudo o que se quiser considerar, é a própria CE que decide sobre a classificação dos projectos como sendo de interesse europeu e se os respectivos apoios são ou não compatíveis com o mercado interno e as Ajudas de Estado, pelo que é também a própria CE quem de facto controla o processo de decisão (o que se tornou uma prática generalizada em Bruxelas).

É neste âmbito que se insere a escolha de cadeias de valor “campeãs europeias” (sob o epíteto de estratégicas), que estarão integradas numa futura política de clusters a nível da UE para concorrerem com China e EUA (até há pouco tempo seria o Japão, mas agora é a China). Desta forma, países como França, Itália, Espanha ou Alemanha conseguem fortalecer as suas grandes empresas conciliando subsídios nacionais com fundos europeus, tudo validado pela CE como estando dentro das regras do mercado único. Os países pequenos como Portugal, com poucas empresas grandes, serão prejudicados.

Isto poderia representar uma evolução face à tradicional política industrial, baseada em sectores e na promoção de “campeões nacionais”. Mas não, é uma promoção disfarçada de “campeões nacionais” que, como a experiência mostra, conduz ao desperdício de recursos e a custos elevados para quem paga impostos.

Primeiro, porque tem uma base económica frágil. A definição de “cadeia de valor” não é fácil porque as ligações económicas entre sectores a montante e a jusante não são lineares e o mesmo sector pode estar em simultâneo no princípio e no fim da cadeia e, simultaneamente, em diferentes fileiras produtivas.

Segundo, a escolha de uma cadeia de valor estratégica implica que outras, igualmente importantes em economias desenvolvidas como as europeias, ficarão para segundo plano, e que uns países serão beneficiados e outros prejudicados. Critérios objectivos para a escolha sobre quem beneficiar não existem, pelo que este é o primeiro passo para a crescente mistura entre política e empresas.

Mais ainda, uma política que é de responsabilidade nacional é transformada numa política europeia que privilegia os interesses de uns contra os interesses de outros (aceite, provavelmente, com uma “ajuda” em fundos europeus).

Mas o maior custo é o reforço das “ligações” perigosas entre políticos e empresas. O Presidente francês Macron tenta aproveitar a saída do Reino Unido para impor uma visão francófona na política europeia que é pródiga nestas “ligações perigosas”. A tradição francesa de intervir em empresas e na economia é uma antiga, e triste, história. Um dos episódios mais famosos foi o do Presidente Mitterrand, que nacionalizou empresas nos anos 1980 com consequências trágicas em termos de recessão, desemprego, inflação e uma grave crise cambial.

França quer impor o seu modelo intervencionista na Europa usando o exemplo da China. Mas a política industrial deve ser feita com base em incentivos que corrijam falhas de mercado e não para “forçar” dirigismos e a escolha de empresas a privilegiar.

A China recusou as características mais importantes do capitalismo, especialmente a livre concorrência baseada em preços de mercado, na propriedade privada e na autonomia e responsabilidade de pessoas e empresas, sem interferência estatal. A opção de imitar um país mais atrasado como a China, que usa práticas não aceitáveis e que aposta no intervencionismo de Estado (e não “capitalismo de Estado”, como alguns propositadamente confundem, pois o Capitalismo é incompatível com a intervenção estatal) é um erro.

O texto reflecte apenas a opinião do autor