Digam o que disserem, Marcelo Rebelo de Sousa faz aquilo que todos os políticos e todos os cidadãos que representam cidadãos, e mereceram o seu voto de confiança, deviam fazer: ir ao terreno, saber como vivem as pessoas, e em que circunstâncias, para poderem actuar com precisão e diligência.
Faz-me sentido ver um Presidente da República sentado no chão ao lado de pessoas sem-abrigo, a conversar, a servir refeições, a ouvir o que têm a dizer, ou a abraçar, simplesmente, aqueles a quem faltam as palavras. Não fico mais nem menos comovida por Marcelo definir novas prioridades na agenda de um PR. Simplesmente faz-me sentido, ponto.
Aliás, não me faz sentido absolutamente nenhum que outros políticos não o façam. Nunca percebi como é que se pode melhorar, por exemplo, o SNS – Serviço Nacional de Saúde – enquanto ministros e secretários de Estado não se dispuserem a marcar consultas e exames em hospitais públicos. Só percebendo que teriam que esperar meses ou anos e, depois, perder horas infinitas em salas onde não há cadeiras para todos, à espera de serem chamados para as ditas consultas, é que teriam uma noção da afinação possível e desejável nos serviços que dirigem.
Mais, quem nunca atravessou corredores frios e intermináveis com um filho ao colo, a arder em febre, nem teve que acompanhar mãe ou pai em cúmulo de dores para fazerem Raios X em espaços frios e desolados, nem falhou a sua própria consulta por ouvir mal e não perceber nada do que dizem os altifalantes roufenhos, velhos e gastos, que chamam os doentes para as consultas, não sabe o que padecem muitos dos que acorrem às urgências e às consultas de rotina, onde tantos doentes e velhinhos passam a vida. Se fosse possível contabilizar todas as horas de hospital e de transportes para conseguirem chegar de madrugada, a horas de sacar uma senha abaixo do número 100 para tirarem sangue e fazerem outras análises para, no fim da manhã ou início da tarde, serem vistos por médicos que muitas vezes nem tempo têm para os olhar nos olhos, verificaríamos que muitas destas pessoas desperdiçam demasiado tempo da sua vida neste circuito infernal.
Por falar em transportes públicos, vale a pena determo-nos neste capítulo. Como poderemos esperar que ministros, gestores, administradores, autarcas e outros decisores melhorem o sistema se eles próprios não andam de autocarro e desconhecem o massacre diário de quem anda de comboio e metro em horas de ponta? Já para não falar do tempo de espera na rua, ao calor e ao frio, de pé, em paragens desprovidas do menor aconchego, conforto ou protecção, por transportes falíveis que demoram a chegar e, muitas vezes, nem chegam a parar porque vão cheios. Só quem sofre ou sofreu na pele a erosão quotidiana provocada pelos transportes públicos pode falar com conhecimento de causa e perceber a realidade-real de quem não tem alternativas para se deslocar de casa ao trabalho e voltar.
Feliz ou infelizmente, quem manda nestes serviços tem um belo carro, que estaciona em garagens amplas e vive assim, muito cómodo, contando quase sempre com motorista privado. O problema não são as mordomias, note-se, o que é grave é estas comodidades distorcerem muitas vezes a percepção da realidade e darem a ilusão de que a logística diária do cidadão comum está muito mais facilitada do que realmente está.
O SNS e os transportes públicos são dois flagelos nacionais, mas não são os únicos. Há mais: as acessibilidades. Falo das condições que são dadas aos cidadãos de todas as idades, origens e condições para circularem de um lado para o outro a pé, com a ajuda de muletas ou em cadeira de rodas. Nas ruas e passeios, claro, mas também nos acessos aos ditos transportes, bem como aos hospitais, centros comerciais, escolas, universidades, museus, templos e lugares habituais.
Enquanto os políticos não percorrerem as suas cidades em cadeiras de rodas ou a empurrar cadeirinhas com bebés e crianças, mas também com velhinhos e doentes, não sabem o que custa a vida. A esmagadora maioria das cidades, vilas e aldeias portuguesas não são ‘user friendly’ para quem tem condicionantes físicas. Não falo apenas de pessoas que dependem de cadeiras de rodas, pois muitas mães e pais com bebés ou filhos ainda pequenos sofrem as mesmas penas que os chamados deficientes (como eu detesto esta palavra! Se estivesse na minha mão mudaria para sempre a terminologia para ‘mais eficientes’ pois é isso que lhes pedimos todos os dias: que se transcendam, se superem hora a hora e sejam muito mais completos e eficientes que nós, os que vivemos sem limitações físicas. Ah! Já agora, que abri este parêntesis, também gostava de dizer que detesto igualmente a designação ‘sem abrigo’ sempre que não vem associada a pessoas. Os ditos ‘sem abrigo’ não são uma marca e, muito menos, uma entidade abstracta. São pessoas concretas. E fecho o parêntesis).
Dizia eu que enquanto os políticos não caírem das próprias cadeiras de rodas nos pequenos e grandes abismos a que chamam rampas e ‘passeios rebaixados’, enquanto não tropeçarem em todo o tipo de obstáculos e enquanto não esbarrarem contra os mil muros e muretes, pilares e pilaretes que se erguem a cada passo, em quase todas as ruas, não percebem o que custa a vida dos que realmente não têm escolha. Tanto quanto percebo, só os políticos que porventura têm ou tiveram um filho ou um familiar próximo em cadeira de rodas, é que percebem a extensão do fenómeno.
Ultimamente e porque houve eleições autárquicas, muitas coisas foram feitas a pensar nestas pessoas em cidades como Lisboa, Porto e outras capitais de distrito, mas ainda estamos a anos-luz daquilo que é preciso fazer e, por isso, diria que quanto mais depressa os políticos se sentarem numa cadeira de rodas, mais depressa quererão resolver muitos dos obstáculos que impedem uma circulação mais livre, confortável e segura. Vale a pena apostarem em circuitos rotineiros, do dia a dia, mas também tentarem encontrar restaurantes com rampas, casas de banho públicas acessíveis, monumentos visitáveis sem ser através de escadas ou escadarias. Sei que ainda há arquitectos que acham que as rampas desfeiam as suas obras em construção ou de recuperação, mas sinceramente preferia não saber.
Mais sítios onde os políticos deviam ir? Desde logo e em força, para todos os cenários de catástrofe natural ou acidentes provocados. Deviam ser os primeiros a chegar e os últimos a partir. Nos gabinetes ministeriais os incêndios não queimam e o fumo dos fogos não intoxica. Só assim se percebem algumas declarações e certos timings de resposta. É pena que o PM não siga o exemplo do PR e prefira sempre espaços assépticos para conferências de imprensa, ou palcos vistosos, enfeitados a néon, com baterias de jornalistas a fotografar e a registar o momento.
Marcelo vai com tempo e conversa sem pressas. Permanece ao lado dos aflitos e dos deserdados. Volta e torna a voltar. Promete passar o Natal com os que mais sofrem e todos sabemos que vai cumprir. Abraça e torna a abraçar. Senta-se no chão e cria relação. Sempre assim foi. Podemos não gostar dele e não apreciar o estilo, mas reconhecemos-lhe coerência na acção. Já era assim no tempo em que vivia em modo ‘mergulho diário’, quando se deixava interpelar e abraçar por curiosos que o esperavam na areia, nas suas praias de eleição, e assim continuou a ser em mercados e feiras, durante as campanhas eleitorais, mas também depois das contagens dos votos e muito depois de ser eleito.
Por mim, insisto, não gosto mais nem menos do PR por passar a vida fora do seu gabinete presidencial, por pegar no telefone e ligar directamente a pessoas anónimas que estão a precisar de ser consoladas ou ir a correr abraçar cidadãos em situação de emergência. Acho que é a sua obrigação e a de todos os políticos que se prezam. Merecer os votos de confiança e honrar os cargos que ocupam passa imperativamente por criarem proximidade, por conhecerem o terreno, por ouvirem os cidadãos sem ser em contexto de campanha eleitoral, por estarem incondicionalmente ao seu lado, por eles. Por nós, quero dizer.
P.S.: A lista de lugares e realidades que os nossos governantes deviam conhecer é interminável, como sabemos, mas no topo das prioridades do momento devia estar um extenso e minucioso périplo pelas cantinas de escolas públicas, assim como pelos gabinetes dos directores das escolas que punem os alunos por protestarem contra a infame realidade com que se deparam nos refeitórios sempre que lhes são servidos alimentos escassos, mal preparados ou deteriorados.