A notícia é fresca, quase tão fresca como o nascimento do bebé de Meghan e Harry, e também foi dada ontem: o governo francês prepara-se para proibir o uso de trotinetas elétricas nos passeios das grandes cidades. Os parisienses revoltaram-se contra a condução perigosa das e-scooters, mas também contra o caos provocado nas ruas e avenidas e, ainda, contra a forma anárquica como estes veículos são arrumados.

Nós, lisboetas, conhecemos bem a anarquia, o caos e os perigos destas trotinetas aparentemente inofensivas, amigas do ambiente e de muita gente, exceto dos peões e condutores que se atravessam no caminho delas.

Sei que parece que tenho uma embirração de estimação pelas trotinetas e pelos que adoram usá-las, mas sublinho um detalhe que faz toda a diferença na perspetiva com que encaramos os transportes alternativos, ecológicos e supostamente seguros: embirro profundamente, sim, mas apenas com o mau uso das trotinetas. Só com o mau uso, não com as trotinetas.

Tal como os parisienses se revoltaram contra o mau uso destes veículos, por serem causadoras de acidentes, atropelamentos e sustos que nenhuma criança ou velhinho merece apanhar, também eu me revolto dia após dia pelas mesmas razões.

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Hoje em dia não há uma única vez que entre no carro sem começar por rezar e pedir para não atropelar ninguém numa trotineta. Não quero atropelar ninguém, mas também não quero ser abalroada na estrada ou a pé, nos passeios, e, muito menos, matar ou ser morta, nem ficar com sequelas para a vida por causa de gente que pega num brinquedo e avança levianamente com ele para a estrada sem a noção do que pode estar a provocar.

Passo frequentemente em ruas e avenidas de piso irregular, com paralelepípedos escorregadios e gastos, atravessadas por carris de elétricos. Nestas mesmas ruas, que convergem quase todas com o centro histórico da cidade ou vão na direção do rio, passou a haver um tráfego intenso de trotinetas e bicicletas elétricas silenciosas, que só se vêm quando já estão em cima de nós. Ou nós em cima delas.

Percebo o ponto de vista de quem se empoleira numa trotineta porque o mundo parece logo infinitamente mais divertido e volta certamente a sensação de liberdade só por poder conduzir sem regras nem capacete. Livres de todos os constrangimentos, é como se, de repente, voltassem a uma espécie de infância perdida. Percebo tudo isto, mas sinceramente não sei como é que os utilizadores não têm medo. Será que não vêm notícias nem lêm jornais? Nos EUA, país onde esta moda começou, as estatísticas dizem que “1/3 dos acidentes têm como intervenientes pessoas que usam as trotinetas pela primeira vez e 63% vêm-se envolvidos em acidentes antes de atingir as 9 utilizações”. É, no mínimo, assustador.

Por cá, não só ninguém se assusta com os números, como em muitas ruas se vêm dois utilizadores a usar a mesma trotineta ao mesmo tempo. Também percebo o romantismo da coisa, um muito abraçado ao outro, os dois muito juntinhos para caberem naquele espaço exíguo, cada um com um dos pés pendurados no ar, para ambos poderem ter pelo menos um pé apoiado no mesmo patim, a uma velocidade lenta, com vistas demoradas, tudo como que em câmara lenta enquanto conversam e se abstraem das filas de trânsito que se formam atrás deles.

Já vimos de tudo, casais empoleirados na mesma trotineta, pais com filhos muito pequenos no mesmo patim (sem capacetes!), pessoas mais velhas e mais novas, todas elas radiantes por irem despreocupadamente de cabelos ao vento pela cidade fora. Numa subida ligeiramente íngreme e com o asfalto enrugado devido às raízes das árvores, um casal de rapazes musculados e aparentemente ágeis, mas certamente demasiado pesados para irem juntos em cima do brinquedo, caíram quase ao meu lado, na minha faixa de rodagem.

Já os tinha ultrapassado (fico sempre em picos para ultrapassar toda e qualquer trotineta que se atravessa no meu caminho, na estrada), mas vi toda a cena pelo retrovisor quando parei no semáforo. Safaram-se de ser atropelados, mas nem eles nem a trotineta ficaram em bom estado. Por muito menos, já vi acontecer muito mais a pessoas que ficaram com sequelas para toda a vida.

Sou a favor de novas formas de mobilidade urbana. Acho que temos demasiados carros na cidade e não tenho nada, absolutamente nada contra transportes alternativos, vias verdes e caminhos preferenciais. Tem que haver segurança para todos e têm que ser estabelecidas prioridades. Os acidentes devem ser evitados a todo o custo e é imperativo adotar medidas que garantam a segurança dos peões e dos automobilistas que circulam nos seus habitats naturais.

Por tudo isto, concordo com o protesto inteligente dos parisienses e com a aplicação de multas pesadas a quem não respeita as regras de trânsito e a quem não usa capacete, mas também a quem se desloca com velocidade nos passeios. Não é possível continuar a ver passar as trotinetas sem fazer nada. É estúpido querer fazer nossas as estatísticas americanas.