Todas as manhãs quando entro no escritório – muito cedo por defeito de maus sonos – cruzo-me com o pessoal da limpeza que ainda se encontra, por volta das sete, a terminar as suas tarefas. São na sua maior parte de origem cabo-verdiana, angolana, guineense ou mesmo de São-Tomé. Negro(a)s como se diria em tempos idos, mas na realidade quase todos portugueses, de facto nunca tendo posto pé em África (apesar de más-línguas – talvez com razão – dizerem que Portugal é o País mais a Norte de África…).
Todo(a)s me falam bem achando estranho e divertido este engenheiro que partilha, apenas na hora, as suas duras madrugadas. Tremo só de pensar o que será para ele(a)s o transporte de casa (sempre longe) até ao meio de Lisboa, a que horas pornográficas se têm de levantar para se agarrarem às vassouras e esfregonas que mantêm habitável tanto edifício.
Uma delas – uma guineense enorme – ouço-a cantar quando me aproximo de mansinho para logo se calar, envergonhada, quando me vê.
Eu incito-a: “Cante, cante, que eu gosto!”.
Mas ela ri-se numa gargalhada baixinho e segue calada a sua função. Como sou velho tenho a memória de outra Lisboa em que as criadas cantavam nos pátios e em casa enquanto faziam as suas tarefas. Eu achava muito bonito e a Nêga traz-me essa memória, ao mesmo tempo que me ensina que pode haver alguma alegria mesmo nas mais duras situações.
Sei que o meu e o dela são mundos que talvez só nestas manhãs se toquem e pergunto-me como verá ela governos, parlamentos e crises políticas, se é que sequer cruzem as suas preocupações.
O que é verdade é que talvez vote. Em quê? E em que é que isso afecta a sua vida? E será que vota para as “europeias”? Atendendo à pessoa e ao que o dia a dia lhe traz não posso deixar de pensar que a consciência e implicações desse voto (para as europeias) serão coisas que lhe passarão muito ao lado…
Estou a descrer da “democracia”? Não me parece que se possa pôr a minha dúvida nesses termos.
Ao se ter o mecanismo que se tem em que a intervenção pública das pessoas comuns (das que ganham a vida todos os dias e gastam o que ganham, com mais ou menos dificuldade, ao longo do mês) se reduz a um voto periódico (num partido), ou numa ou noutra manifestação assumindo aspectos mais ou menos de folclore (gritaria de rua, greve ou desacato) convenhamos que a possibilidade de interesse pela política será sempre baixa.
Quando os partidos acenam com melhorias, normalmente enroupadas em condicionamentos incompreensíveis, estando ainda por cima pouco interessados, no calor das campanhas, da exequibilidade destas, acabam por ser estas as únicas mensagens que passam ao eleitorado, sendo indiferente que se revelem falsas. Essa falsidade não é um problema de maior porque – em Portugal – um Partido não é uma pessoa a quem se possam assacar mentiras ou responsabilidades, normalmente sendo que a única personalidade que sobressai é o candidato a Primeiro- Ministro, por definição inacessível .
Como governar é (deve ser) muito mais que o aumento da pensão ou do subsídio (assuntos que, em rigor, são administrativos e que deveriam ser resolvidos ao nível de Direcção de Serviços…), entra-se na grande contradição da governação moderna “democrática”: o querer atender prioritariamente ao pequeno assunto (normalmente propagandeado com exagero) retirando o tempo e a reflexão para o pensamento e decisão estratégicos, condicionando o bem estar futuro do País e de todos.
A juntar a isto o pensamento dito “progressista” (não consigo perceber o progresso…) tem-se entretido a destruir a Sociedade e a História, numa aparente procura de construção de uma nova realidade que condena tudo o que vem detrás, na realidade aplicando as velhas teorias revolucionárias de conquista de poder, desamparando os simples que, longe de teorias complexas de desconstrução, encontravam o seu apoio numa determinada organização social e de costumes absorvida desde tempos imemoriais.
É claro que a minha Nêga se votar como não tem, como devia, o seu deputado, cara a quem ela pode pedir e insultar na devida conta (pensem nos MP britânicos e o que tal representa de proximidade do poder) votará – se votar – o quê? Chega porque este lhe fala numa linguagem que ela entende, lhe parece que está mais próximo do que ela precisa e não advoga “europas” que não percebe nem acha que necessita? Partido Comunista ou Bloco de Esquerda porque agitam os fantasmas da oposição de classes? Partidos dos Arco da Governação?
Os dirigentes modernos foram-se esquecendo de que Vox Populi, Vox Dei e acharam que o simples facto de afirmarem determinados destinos era suficiente para o convencimento geral.
Não era, não foi. E a realidade revient au galop, como dizem os franceses.