Contaram-me, não vi. Há dias, num debate televisivo, um sujeito, naturalmente de esquerda, mencionou as pessoas de direita, ou os conservadores (não sei ao certo), que se “demarcam” de André Ventura. E citou um ou dois exemplos. E de seguida mencionou as pessoas de direita, ou os conservadores, que não se “demarcam” de André Ventura. E citou-me a mim.

Há aqui uma imprecisão, uma intrujice e uma demonstração de petulância. A imprecisão é situar-me na direita apenas porque não sou – Deus me livre – de esquerda. Se o termo usado foi conservador, mais disparatado ainda: não quero conservar nada, excepto o meu sossego.

A intrujice, particularmente descarada, é sugerir a minha simpatia pelo dr. Ventura. Por acaso, e não por directiva da esquerda, não gosto do indivíduo, um oportunista com fogachos de Messias, não gosto das ligações públicas do indivíduo, assaz desaconselháveis, e não gosto da maioria das opiniões políticas do indivíduo, crescentemente amalucadas. Felizmente, no “site” do Observador encontram-se diversos comentários, escritos e falados, que deixam claro o que penso sobre o líder plenipotenciário do Chega – e todos eles anteriores às propostas do partido para castrar os homens e as mulheres que se portam mal. Não esperei pela obsessão com os órgãos reprodutivos da espécie para perceber que aquela gente não regula.

O principal ponto, porém, é a petulância. A que propósito a esquerda “exige” que a “direita” se “demarque” do dr. Ventura se a esquerda não se demarca de um populista semelhante e de um fanático mais perigoso como, digamos, o dr. Louçã? Todos os dias vemos gente de “direita” manifestar genuíno ou falso horror pelas ideias (pronto, pronto) do dr. Ventura. Tirando três ou quatro casos, não vejo ninguém do famoso “espaço socialista” tratar o dr. Louçã por aquilo que ele afinal é: um demagogo, um mentiroso compulsivo e principalmente um poço de apetites totalitários.

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Não há comparação entre um e outro? Talvez não, se se considerar que a capacidade do dr. Louçã em infligir danos ao país é imensamente superior à do dr. Ventura. E a vontade não é de certeza inferior. Não sabemos muito bem que regimes o dr. Ventura toma por modelos (suspeito que nem ele sabe). Mas sabemos demasiado bem os regimes que inspiram o dr. Louçã, e nenhum é democrático. Não sabemos muito bem até que ponto o dr. Ventura acredita nas patetices que profere (espero que pouco). Mas sabemos que a intolerância é o alimento do dr. Louçã. Não sabemos muito bem se o dr. Ventura se vai convencendo gradualmente de uma grandeza que não possui (suponho que um bocadinho, sim). Mas sabemos da maníaca superioridade moral que eleva o beato Louçã acima dos mortais que despreza. Não sabemos muito bem se o dr. Ventura chegará a ter poder (imagino que não). Mas sabemos que o dr. Louçã tem um poder imenso, um poder que construiu ao longo dos últimos 20 anos e que não se limita aos cargos oficiais que absurdamente desempenha. Para efeitos eleitorais, o dr. Ventura finge-se alheio ao “sistema” e o “sistema”, curiosamente, parece dar-lhe razão. O dr. Louçã, que também utiliza a lenda do “outsider”, é o “sistema” literalmente cuspido e escarrado.

O dr. Louçã é conselheiro de Estado e passou recentemente pelo conselho consultivo do Banco de Portugal, pormenores que, só por si, colocam Portugal ao nível da Nicarágua e da Eritreia em matéria civilizacional. O pior, desgraçadamente, não é isso. Nem é o dr. Louçã ter espaços de opinião em não sei quantos jornais e televisões. O pior revela-se em situações à primeira vista insignificantes. Esta semana aconteceu uma.

Na Sic Notícias, o dr. Louçã referiu as propostas para o IRS do Chega e da Iniciativa Liberal, jurando que ambas prejudicariam os mais pobres. A aritmética básica permitiria compreender que, ao contrário de prejudicar, a proposta da IL beneficiaria quem ganha menos (a não ser quem já não paga IRS, e que assim continuaria). O dr. Louçã manteve a patranha no Facebook, e insistiu que ambas as propostas são “uma vigarice”. A Sic Notícias organizou um confronto entre o deputado da IL e o dr. Louçã, perdão, um moço de recados que o dr. Louçã lá mandou para ser enxovalhado. No Facebook, à revelia da realidade, o dr. Louçã teimava, fugindo do contraditório e ciente de que os seus seguidores são melhores em facciosismo do que em contas. O Polígrafo, uma coisa que estrangula os factos para agradarem aos senhores que mandam, sentenciou que a falsidade das afirmações do dr. Louçã, elas sim uma vigarice pegada, era “inconclusiva”. No final, o dr. Balsemão não despediu o dr. Louçã e o prof. Marcelo não o enxotou.

Lenine abominava a verdade: não se argumenta com o adversário, destrói-se  o adversário. O pior não é o dr. Louçã, leninista aplicado, mentir, sempre, sempre, sempre. O pior é mentir sem ser exposto à humilhação e às consequências da mentira. O pior é a vasta protecção e a ampla impunidade de que goza. E ele goza. Uma ocasião, o dr. Louçã acusou-me de elogiar um livro que eu classificara de “lixo” e “porcaria”. Nunca reconheceu o erro, mesmo porque não houve erro: houve um desejo deliberado de enfiar uma fraude nas cabecinhas permeáveis dos respectivos fiéis. O caso não tem importância? Apenas na medida em que se dá importância ao dr. Louçã. Com a honestidade e os escrúpulos do revolucionário médio, o dr. Louçã é o exacto oposto de um homem respeitável.

Apesar disso, suscita respeito. O respeito inexplicável de uma esquerda que se diz moderna e democrática e não se importa de conviver jovialmente com o dr. Louçã e os seus bonequinhos do BE, inimigos óbvios da modernidade e da liberdade. Na medida em que não se demarca de um tiranete de tamanho calibre, é possível que essa esquerda não seja o que diz ser, e seja o que o tiranete é. Falta falar na “direita” que se demarca do dr. Ventura e não se demarca do dr. Louçã. Nem se demarca da esquerda que não se demarca do dr. Louçã.